Quem, por demoradas imersões, se der
ao trabalho de mergulhar nas profundezas da mendicidade e examiná-la com toda
minudência, concluirá que o ofício esmoleiro é protagonizado por duas confrarias:
uma é real, outra inverídica ou, a bem dizer, uma verdadeira outra falsa. Dificílimo
distinguir uma da outra, pois, numa indistinção, apresentam a mesma cara, o mesmo
indumento, enfim todos os traços caracterizadores da face dolorosa e pungente
da miséria humana, que confeita as ruas. O propósito de ambas é o mesmo:
mendigar. A verdadeira, em decorrência das fatalidades ou destino insidioso, pede
por justa precisão, pela imprestabilidade laboral: invalidez, cegueira,
aleijão, hemiplegia, decrepitude arrimada em cajado, enfim, os que sucumbiram. A
falsa, porém, pede por comodidade, por desfastio, por malandrice, por aversão
ao trabalho, por desvergonha abominável; que não choca mais a ninguém. Os personagens
da falsa mendicidade, — hábeis na extorsão pelo rogo, em nome de Deus — buscam
na representação, na fantasia, no simulacro, os recursos para delinear um
cenário de enfermidades, dores e aniquilamento, impossível de ser recusado por
qualquer pessoa: crédula, incrédula, cauta, incauta. Se do sexo feminino, de
pronto se dizem viúvas, desamparadas. Costumam, envoltas em chalés pretos,
pedinchar durante a noite ocasião em que puxam, eventualmente, um ou dois
petizes, tão sonolentos quanto andrajosos, mais das vezes alugados da vizinha; acumpliciada.
Nesse cenário de engambelar e iludir, maior serventia terão os petizes de caras
borradas ou confeitadas de bexigas. Pedinchar à noite atesta maior lugubridade;
passa a todos, até aos sovinas, dolorosa impressão de confrangimento. Há dentre
as farsantes as que têm vocação lamurienta, as chamadas carpideiras que, por terem
facilidade de verter, eventualmente são até contratadas para prantear mortos
durante os funerais; haja lenço, o pranto é verdadeiro.
Pedinchando na via púbica, nas
calçadas, na sacristia, no vão das portas, a malandrice, dotada de grande
vocação dramática, vai-se aprovisionando à custa das pessoas de boa-fé. Mas os pedintes
embusteiros sabem que a esmola é óbolo incerto, depende da generosidade e
estado psicológicos das pessoas, das circunstâncias. Daí a necessidade do emprego
de recursos de grande poder de convencimento e comoção dentre os quais os
patéticos “atestados”, (apócrifos
evidentemente), que dizem o tamanho e a natureza da desgraça que lhes vão por
casa: o acometimento de graves enfermidades; a prole faminta e numerosa; o
cadáver à espera de caixão, invencionices correlativas e acessórias conforme a
ocasião e o espectador. Há casos, insólitos, em
que até se rojam para esmolar, é recurso extremado para fazer emergir a
caridade hesitante. Mas
nisto fiquem atentos os avarentos, que tanto prezam o dinheiro, pois óbolos
reles podem desgostar os malandros, circunstância que, via de regra, enseja praguejamento
em chuva.
Se, no bairro em que exploram a caridade
pública aparece algum neófito os decanos vitalícios martirizam-no como nas
escolas aos estudantes calouros. Pontos de pedinchar de alta cotação, os mais
rentáveis, são, por vezes, vendidos como se fossem cadeiras de engraxate.
Se a mendicidade verdadeira é instada
a pedir, e o faz incomodamente, a malandrice esmola foliando, com enorme
alacridade de espírito. Ela vê na mendicância não somente um meio de vida, mas
uma pândega, uma faina das menos fatigantes, sem responsabilidade.
E enquanto não se pode distinguir o inverídico do real
segue, à sombra da miséria verdadeira, o cortejo das práticas enganosas. A confraria
sanguessuguense vai, à folia, amealhando provisões junto à toleima
incauta dos que dão esmola. Enquanto existir mosaicos de povos e de
consciências há de haver condutas picarescas: não há meios capazes (ainda mais
quando se tem a descura do poder público) de dissuadir essa confraria da
viciosa profissão: nem oferta de um bom trabalho, nem umas cócegas no dorso com
corda de sedenho, nem um longo tour por essas enxovias bolorentas, mesmo
porque muitos desses hipócritas são velhos frequentadores dos calabouços.