quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Conto: Maria Preta

                                          Maria-Preta


                                      

    Jorge Câmara Lemos

Membro ALTEC

(Academia de Letras do Território dos Carnaubais)


As pequenas cidades têm características impressionantes. Muitas pessoas fazem parte do nosso cotidiano sem que sequer as conheçamos, apesar de estarem em nossas vidas. Estão ali, presentes, sem que sua presença seja importante — até que algo surpreendente venha a chamar nossa atenção. Não, não é redundância: presentes sem estar presentes…

Assim aconteceu com Maria. Maria Preta, como todos a conheciam na cidade.

Todos os dias, as pessoas viam Maria passar, para lá e para cá, pedindo um pouco de farinha, uma mão de arroz, uma ossada ou, quem sabe, até um dinheirinho vindo das almas mais caridosas.

E assim o tempo foi passando, e as pessoas continuavam chamando-a de Maria, como é de costume chamar aqueles cujo nome verdadeiro desconhecemos. Dado sua cor, precisava de um sobrenome. Maria Preta, pronto! Sua cor deu-lhe nome de família. Alguns até o diziam com chacota. Se fosse hoje, chamariam de bullying.

Não se sabia se era Maria de João Vieira ou Maria de qualquer outro sobrenome, pois nunca ninguém se importou em perguntar isso a ela. E Maria, sempre que chamada, passava a vida olhando com olhos de sofrimento e dor, carregando a amargura de ser uma alma sem rumo.

Era um verdadeiro mistério aquela mulher que estendia as mãos no comércio e olhava as pessoas com tanta dor que ninguém tinha coragem de encará-la nos olhos. Aquela negra, sofrida, quem sabe até oriunda de alguma senzala, mal falava. Ao receber alguma esmola, olhava desconfiada e só dizia: amém!

Início do século XX. Quem sabe se Maria não era realmente de alguma senzala? Ninguém sabia. Ninguém conhecia sua origem. Nunca se ouvira falar de seus parentes.

Sequer sabiam onde Maria morava.

Toda cidade que se preze tem na sua entrada um rio cortado por uma ponte. As pessoas raramente a viam descendo a ribanceira, no penedio, entre o rio e a ponte. Ninguém a via pegando a beira do rio.

Em uma manhã quente e ensolarada, de águas ainda abundantes do rigoroso inverno, algumas mulheres lavavam roupa — ou batiam roupa, como se costuma dizer no interior. No meio da algazarra das lavadeiras, de repente, uma delas soltou aquele grito que vem da alma, feito de medo e espanto: dois pés boiavam nas águas do rio Surubim.

Chamaram o destacamento da cidade. Um sargento, um cabo e dois soldados chegaram com toda a autoridade e foram ver o que estava acontecendo.

Sem querer molhar a farda, o sargento, homem alto e cheio de autoridade, pediu a um dos pescadores que jogasse uma tarrafa sobre aquele corpo que boiava. E qual não foi o espanto quando perceberam que era Maria. Maria Preta, a mesma Maria que todos viam na feira todos os dias, esmolando, tentando sobreviver.

Mas, de repente, surgiu mais um corpo. E outro. Três corpos nas águas do rio Surubim. O espanto foi geral. Alguém percebeu que os dois homens cujos corpos apareceram eram muito parecidos com Maria Preta.

Um dos curiosos acreditou que Maria morava por ali perto. Afinal, a pedra onde as mulheres batiam roupa ficava muito próxima do lugar onde Maria sempre descia ao rio.

Os curiosos logo se exaltaram, e foi aquela algazarra. Homens, mulheres, crianças, o próprio destacamento da polícia — todos se reuniram em uma verdadeira multidão exaltada na tentativa de encontrar a casa de Maria Preta.

O fim do mistério estava ali. A poucos metros do local onde as lavadeiras ganhavam seu sustento, apareceu o barraco daquela mulher que ninguém sabia de onde era. Uma panela no fogo, três redes amarradas, um quarto que talvez tivesse dois metros por dois metros. Uma casinha de palha, solitária, escondida.

E até hoje ninguém sabe de onde veio Maria Preta. Até hoje ninguém sabe de onde eram Maria Preta, seus filhos e o pai de seus filhos.


Nenhum comentário: