Pautadas
por discordâncias, de um lado, e assentimento, de outro, as cotas raciais estão
permanentemente em voga. Conceitualmente, as cotas
são vagas que se reservam em instituições públicas ou
privadas, (vestibulares ou concursos) e têm o propósito de amortizar dívida histórica do
Brasil para com os negros.
Efetivamente,
a dívida é fato incontroverso; não foi resgatada por inteiro. Afinal, durante séculos o Brasil
fez do escravismo a sua principal bandeira. Bandeira tão amada pelo polo senhorial
quanto odiada pelos pregoeiros da liberdade. Manter na detenção mão
de obra escrava era negócio dos mais promissores para a sociedade escravista
que reinou no período colonial. Por meio do pujante comércio de escravos os
senhores da Casa Grande aprovisionavam a Senzala de mão de obra necessária ao
cultivo de terras pródigas; onde brotavam gigantescas e luxuriantes plantações,
mormente cana de açúcar. Essa a principal razão por que o Brasil foi o último
país do mundo a conceder alvará de soltura à mão de obra escrava; só o fez por
causa das fortes pressões da Inglaterra. A classe senhorial resistiu o quanto
pôde a todas as ideias e tentativas libertárias, sobretudo a partir do século
XVIII quando sopraram fortes as primeiras emanações ideológicas que negavam
legitimidade ao regime cativo. Essas emanações, de boa semente, demarcaram o lento processo de demolição do regime
escravocrata. Esse passado escravista faz pesar sobre o Brasil
enorme dívida social; os negros
são detentores de haveres de grande monta. Isso é tão razoável quando
induvidoso. Entretanto, as cotas parecem miúdas demais para servirem de moeda
de pagamento de avultada dívida. De tão miúdas fazem lembrar racionamento. Racionamento,
por essência, tem caráter paliativo, não peremptório. Não é justo que a dívida
seja quitada aos moldes dos haveres lançados, em pingas, nos cadernos de
merceeiros.
Mas a ideia de saudar, a conta-gotas,
dívidas para com a raça negra parece bastante antiga. Exemplificativamente, vejamos:
a primeira generosidade dos fautores da escravidão para dissimular as marcas físicas
e psicológicas do açoite, surgiu em 1871, (obviamente depois de pressões
internacionais), quando se tornaram libertos todos os filhos de escravas
nascidos a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre. Posteriormente, em
1885, sobreveio a Lei dos Sexagenários, que assegurou liberdade aos escravos
com mais de 60 anos. Claro. Esgotados no eito escravista já haviam
perdido a serventia. Sequentemente, em 1888, surge a Lei
Áurea que tornou extinta a escravidão no Brasil. Embora a manumissão
tenha-se verificado no papel, o negro permaneceu sojigado pela dependência
econômica, circunstância que reduziu a aparatosa lei Áurea em simples norma de adorno.
Ainda para suavizar as expiações horrendas, criou-se, mais tarde, uma manobra
eufêmica por meio da qual a odiosa segregação passou a chamar-se preconceito de
cor ou preconceito de raça.
Agora, na esteira dos
lenitivos, surgem as cotas, simulacros de manchões, que acodem a poucos. Todavia,
“o racismo não é uma
entidade personificada por uma só pessoa ou grupo de pessoas”. O Brasil
inteiro é multirracial. Sendo assim, benefícios que forem ofertados ao
povo deveriam ocorrer de modo isonômico, não desigualmente como evidenciado
pelas cotas. Estas, diga-se, assumem o caráter de favor a grupos, circunstância que conspira
contra a igualdade de oportunidades. A igualdade de oportunidade é da essência
do regime democrático, é princípio constitucional basilar. Nisto merece louvores
o princípio fayoliano: “o interesse particular subordina-se ao geral”.
Supondo que as exceções
se expandam a outros setores, futebol, por exemplo, situações estapafúrdias haveriam
de surgir. No futebol, onde a distância para se bater um pênalti é de nove metros,
se o batedor tiver pele negra essa distancia haveria de ser reduzida. Imagine o
imbróglio, imagine o cipoal de leis, decretos,
resoluções etc., para disciplinar essas insólitas exceções. Favorecer ou
desfavorecer por causa da cor da pele são circunstâncias à míngua de amparo porque
a Magna Carta assegura igualdade a todos, sem distinção de nenhuma natureza. As
cotas, que pressupõe tutela, além de denegar os méritos inerentes à raça negra ainda
faz crer que os negros precisam de pares de andas o que não é verdade. Essa
proteção impertinente exprime desonra a uma raça cuja ascendência está recheada
de heróis. Sob o arrimo da coragem e do talento esses heróis, insurretos, se notabilizaram pelas suas bravuras em favor da liberdade da sua gente: João
Mulungu, José Cabrinha, Dragão do Mar, Gangazuma, Zumbi dos Palmares, Adão, Nuno,
Ambrósio, Manuel Jurema e vintenas de outros.
Para resgatar a dívida que o país tem com os seguimentos marginalizados,
compostos na sua esmagadora maioria, por negros e mestiços, nada mais
apropriado, mais completo, mais altivo, mais dignificante, do que os governos
oferecerem escolas públicas, completas, regulares e de qualificação
profissional. Somente a qualificação permitirá a todos competir em pé de
igualdade. Se os negros não estão suficientemente preparados para concorrer a vagas
nos vestibulares ou nos concursos públicos, é porque os governos não lhes
oferecem ensino que lhes assegurem cabedal necessário ao enfrentamento das adversidades.
Qualificar é libertar, é fornecer recursos para a superação. A falta de escola pública de qualidade prejudica não
apenas os negros, mas os brasileiros pobres de um modo geral. Ainda que o anseio
universal seja a igualdade não se pode desconhecer que a desigualdade permeia
toda a Criação. Portanto, é irrelevante arguir desigualdade, mas igualdade de
oportunidades é algo que se impõe como indispensável a todos.
É preciso inumar em cova profunda o critério de se estabelecer
desigualdade pela cor da pele. Isso fica para colonizadores, hábeis preadores
de índios, cujas ações, do alto das suas donatarias, se pautavam, mais das
vezes, por mandonismo truculento. As cotas são um modo disfarçado
de realçar um racismo que ficou num passado distante. Elas se prestam, senão
para viciar, para constranger.
Acordem-se
os sonolentos, pois “já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”. O regime democrático
nacional, mesmo que pálido de decálogo cívico, infelizmente, não comporta prerrogativas
fundadas na cor da pele. Urge que sejam avaliadas todas as clarividências para
que, removidas as divergências e as insensibilidades, prevaleça a obviedade: a raça
negra merece o principal: escolas públicas de boa qualidade e não o secundário:
cotas. Para a valorosa
raça negra as cotas, favores de ocasião, exprimem algo que não lhe assenta à
dignidade; não honra o seu real merecimento. Elas depõem
contra quem recebe e, mais ainda, contra os governos, pois atestam a incapacidade do poder
público de ofertar ensino de qualidade. A raça negra prefere a moeda suada, não
a achada.
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