No interior da cidade de Pedro
II, existe um lugarejo chamado Sossego.Encravado entre morros e cheio de cachoeiras morou o meu avô,
o pai do meu pai. Eu não vejo esse lugar desde os meus doze anos de idade, mas
tenho guardada todas as lembranças da minha última visita. Algumas recordações
se vão no correr dos anos, mas num belo dia de chuva você se encontra
redescobrindo cenas consideradas perdidas.
O Sossego não é só um belo lugar.
É a representação perfeita de uma família interiorana carregada de filhos numa
época em que a cobrança para uma boa educação dos filhos passava pela opressão,
pela rigidez de todas as regras e até pela violência física. Quanto mais
severos eram os pais, mais bem vistos e respeitados por toda a comunidade.
Meu avô era alto, magro e era
dono de uma altivez que escondia uma sensibilidade que nunca pode ser
demonstrada. Sempre fora de dar ordens e todas deveriam ser rigorosamente
obedecidas sob a pena de ser torturado com um “chiqueirador”, quem ousasse contestar, imagine infringir. Mesmo
já adulto, o meu pai ainda foi vítima dessa chibata, pois ele sempre aprontava
todas.
Todos notavam a força do meu avô imediatamente.Seu
autoritarismo invadia todos os aposentos da casa grande, atravessando como uma
flecha o receio dos filhos. Quando chegava tarde da noite em seu cavalo, o filho de sono mais leve acordava todos
os outros para que levantassem suas redes e não atrapalhasse a passagem do todo
poderoso que entrava fedendo a fumo e a cachaça.
Depois do almoço e do jantar,
todos ficavam de pé em torno da mesa e eram obrigados a rezar o Pai Nosso. A
comida deveria ser sempre agradecida. Essa religiosidade ele herdou do seu pai,
que era a única pessoa naquela região que possuía uma Bíblia e por isso mesmo,
o mais respeitado de todos.
Mas mesmo debaixo e toda essa
rigidez, ele nunca esqueceu a educação dos filhos. Como não existia escolas,
ele contratava professoras que se mudavam de mala, cuia e livros para aquela
região extremamente remota. Todos os filhos foram alfabetizados. O papai desde
garoto foi mulherengo e desvirginou todas as professoras que apareceram. Apenas
uma ficou grávida, e eu daria minha vida para saber por onde anda esse meu
irmão bastardo.
Apesar de tudo que o papai
aprontou, quando ele saía de Campo Maior para o Sossego, era recebido com foguetes. Quando o vovô ouvia
o ronco do motor do caminhão reverberando descendo as ladeiras, ele mandava soltar
fogos e todos na região sabiam que era o papai que chegava carregado de histórias fantasiosas para
contar.
Meu avô era dono de muitas
terras, casou com minha avó Maria, com quem teve 14 filhos. Sete homens e sete
mulheres. Além de ter parido tantas vidas, a minha avó fiava algodão e deles,
num trabalho rudimentar de artesã, fazia redes para a família e nunca
desgrudava dos outros afazeres domésticos. Ela morreu aos oitenta anos sem
nunca ter conhecido dinheiro. Tudo era guardado dentro de um baú pelo meu avô e
ela nunca soube o que era comprar. Tenho certeza que ela foi a primeira filha
da resignação.
Ali, naquelas terras de sossego, ela
vivia sempre sorrindo e eu sempre quis perguntar como ela conseguia ser tão feliz. Tinha uma estatura baixa, mais era
forte e de fala mansa. Dona de sobrancelhas enormes, bem espessas. Era como se
escondesse debaixo delas algum segredo, um mistério da sua vida. Quem sabe, um
enigma que a sua doçura impediu de ser revelado.
Havia plantação de milho,
mandioca, cana, fumo, feijão e algumas cabeças de gado. Quando as rapaduras
eram preparadas, vinha daqueles tachos enormes um cheiro doce que perfumava
toda a região. Na época da farinhada , a festa era sagrada. Todos os filhos
eram obrigados a trabalhar várias horas seguidas sem descanso, sem remuneração e ainda eram
felizes.
Na casa grande existia uma grande
varanda com redes de cordas dependuradas. Na sala de jantar, de onde se via o fogão
à lenha, era toda cercada por uma espécie de peitoril e de lá, o nosso olhar contemplava
a ladeira que levava à cachoeira de águas gélidas e escuras. Havia muitos pés
de urucum, atas e mangueiras. Do lado, um curral cheio de cabritos insolentes. Na
grande árvore que enfeitava o lado da casa, eu via abismado a pele de boi
estendida - e o cheiro de sangue ressecado nunca saiu das minhas narinas. Ele
era infestado de moscas.
Todos os aposentos possuíam uma
mancha negra na parede causada pela fuligem da lamparina que era enorme. Todo o
ar noturno tornava-se viciado por aquele cheiro de querosene queimado. Pelos
cantos do corredor, amontoavam-se selas de cavalo, esporas, chapéus, chinelos de couro, o indefectível gibão, cordas, chicotes, estribos, rédeas e baús centenários.
Tarde da noite eu conseguia ouvir
o sussurro das folhas secas pisadas pelos bois que moviam seus chocalhos a cada
virada de cabeça. Aquilo pra mim era música, mesmo com o zumbido de grilos e
cigarras.
Parece um pouco de tristeza o que
sinto, mas é só o cansaço da lembrança. Queria ter vivido mais tempo naquele
Sossego.
Sergio Emiliano.
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