Desde o
berço os órgãos do corpo humano funcionam cheios de motivação. Seus ânimos
fazem lembrar o aprazimento das crianças no playground. Porém, com o tempo
decorrido começam a apresentar discrepâncias de desempenho; vão-se
desmotivando, trabalhando entre regular e sofrível. Uns alegam cansaço, outros balbuciam
resmungos inaudíveis sem precisar a natureza das suas queixas. Há também os
irritados, cheios de discordâncias, vivem incitando os vizinhos à revolta como
se quisessem incendiar coivaras. Enfim, cada qual com suas queixas, patologias
e síndromes.
Ao meu coração, esse resignado
“boi de carro” que labuta dentro do meu peito, sucedeu que, esfalfado ante a
canga do tempo, ameaçava não ir adiante; é o que diziam os laudos médicos. Nesse
estado de quem ameaça desabar, fez-se, não de vontade, o meu principal
oponente. Isso me metia medo; ter um inimigo, mesmo arquejando, morando dentro
de mim. Nem sempre o perigo vem da ação de quem pode, mas da inação de quem
está privado de fazer. Em decorrência desse estado de quase apagamento, podia-se
antever a suspensão do bombeamento do precioso líquido, de tom escarlate-solferino,
que deixaria de dar de beber todo o canteiro. Desse modo, seco o leito dos regatos, dos canais,
das regueiras, portanto, sem o “Poço de Jacó” para proceder à rega, (perdoe-me o Evangelho de Jesus pela comparação irreverenciosa),
pus-me a orar, pedindo a interveniência do alto.
Destarte, era inadiável submetê-lo
a um tratamento que pudesse estimulá-lo a cumprir as suas competências, não sei
se regimentais ou estatutárias, para as quais fora criado, mesmo que isso exigisse
uma intervenção mais severa, inclusive porque, segundo os laudos, tropicava em
avarias. E foi debaixo desse gélido sobrosso, dessa inquietação pavorosa, que tomei
o alvitre de recorrer a um especialista, o cirurgião cardiovascular Ricardo
Corso, que lhe aplicou um disciplinamento; impingiu-lhe uma reforma, vigorosa, que
o deixou recauchutado: três safenas, uma mamária. O meu peito de “garrincha”,
tão escasso quanto delicado, adquiriu feições de monstro catita. No bojo da
reforma a esperança de não sair cedo do palco quem poderia (senão por merecimento,
mas por misericórdia) permanecer até o último ato, enfim, não ver cortado o fio
da existência antes do epílogo, antes de testemunhar a transcorrência das
estações.
E assim é a vida. Quando se pensa que
ela segue o seu curso ordinário o extraordinário se antepõe. “Quando
achamos que sabemos todas as respostas, o mundo modifica as perguntas”.
Ninguém sabe o que nos aguarda, Deus sabe.
“Quando
o discípulo, ou a obra, fica pronto, o mestre aparece”. Aliviado com o
resultado formidável da obra de engenharia médica (aterradora), nada me resta
senão agradecer; agradecer em tom de salmo: obrigado, primeiramente ao mestre
celestial: meu Senhor e meu Deus; obrigado ao mestre terreal: Dr. Ricardo Corso,
cirurgião, e sua equipe. “Um
médico, só por si, vale alguns homens”. Agradeço sobremodo ao meu “boi
de carro”, pelo sacrifício de haver resistido a tantas vexações, mas revigorado
permite a este velho carreiro, por um pedaço de tempo, carrear pela estrada da
vida, (contornando as vaidades tolas), e entoando intimamente cânticos em louvor
a Deus. Agradeço aos parentes e amigos por me haverem apalpado com palavras de
conforto. A todos, por favor, relevem a incontida emotividade de quem esteve sob
a ameaça de um exército de malfeitores: temor, incerteza, abatimento,
melancolia, mas que se evadiram graças às palavras ternamente sinceras que os parentes
e amigos fizeram jorrar sobre mim de modo tão carinhoso a moldes de chuvas de
flores. Verdade que agosto, com os seus dias queimosos, tinha para oferecer apenas
a nudez das árvores realçada pela nota triste do sabiá no galho, mas setembro, cheio de solidariedade enviou, a título
de cortesia, os buquês primaveris; muitos, aliás, segregando néctares que me
serviram de fármaco.
Eis que a aflição passou; ficaram as manchas de choro e os gemidos do
tamanho dos destroços. Cresceu o meu débito, impagável, inscrito na dívida
ativa do sobreceleste. Por já ter sido agraciado nada peço para mim, mas rogo a
Deus que livre das enfermidades do corpo e da alma todas as criaturas: humanos
e os animais.
Esta página vitoriosa de incentivo à vida, valentemente pelejada por um
Corso — não da Córsega de Napoleão, mas do Rio Grande do Sul — a quem dei contornos
literários, ergo ao insigne cirurgião cardiovascular, Ricardo Barros Corso, notável
da Medicina, mãos enluvadas, tão servo do seu ofício quanto Miguel Couto o foi:
“Retirai-me os atributos da Medicina
e nada mais me resta. Desde que me entendi, a ela dediquei os meus pensamentos
e depois todos os meus atos, e se neste empenho até hoje me consumo só nele me
retempero. Para ela (a medicina) os
meus anseios, as minhas aspirações e o meu trabalho. Teria remorso de distrair
em outros cuidados o meu tempo {...}”.
Nessas
horas infaustas, sofrimento, abatimento, é que ganha especial relevo uma Maria,
uma Fernanda, uma Carmem, não importa o nome, enfim mulheres extremosas que, fortalecidas
no sentimento de amor, velam o amado de modo compassivo sem ao menos perceber
que sofrem. Feitas de brandura e firmeza elas, de modo luminoso, vão desbastando
desalentos e infundido a fé. Quem as tem que as guarde não somente para as
ocasiões de aperturas, mas para o companheirismo, que revigora, fortalece. Cá tenho
a minha. Além de Maria também é do Socorro; em cujos atributos há uma
particularidade: a de ler os meus pensamentos.
Desta
cirurgia de grande porte convalesço, extenuado, limitado de voz e movimentos, porém
esperançoso e agradecido. Benefícios são bem-vindos, inclusive os de sabor acre.
Se alguém tem alguma dádiva propiciatória ao meu
propósito de soerguimento, não precisa luxo: basta uma prece, uma intenção, uma
palavra, uma canção, uma “Mercedita”.
“A
convivência do sofrimento ensina a humildade e lembra, na lição de cada dia,
que o homem não é senão o sonho de uma sombra”.