Se alguém me dissesse, em 2004 – quando o primeiro governo Lula
sofria a oposição feroz de toda a mídia brasileira e tinha pouco ou nada
para mostrar de resultados – que em dez anos o segundo turno da eleição
presidencial seria disputado entre duas ex-ministras do governo Lula,
uma pelo Partido dos Trabalhadores e uma pelo Partido Socialista
Brasileiro, eu diria ao meu suposto interlocutor que a sua fé na
democracia era um comovente delírio. A provável ausência, pela primeira
vez no segundo turno das eleições presidenciais, de candidatos da
direita autêntica, do PSDB, do DEM e do PTB, é mais uma boa notícia que a
democracia nos traz. Imagina-se que, vença quem vença, muitos dos
derrotados voltarão correndo para os braços confortáveis do novo
governo, esta é a má notícia.
Tenho familiares e bons amigos que vão votar na Marina e também no
Aécio. Eu vou votar na Dilma. Acho que foi o Todorov quem disse (mais ou
menos assim) que a democracia nos reúne para que a gente resolva qual é
a melhor maneira de nos separar. Não sou nem nunca fui filiado a
qualquer partido, já votei em vários, tenho amigos em alguns. Neste que é
o maior período democrático da nossa história (25 anos, sete eleições
consecutivas), o Brasil não parou de melhorar e não há nada que indique
que vá parar de melhorar agora.
Votei no Lula, desde sempre até ajudar a elegê-lo em 2002, com o
palpite de que um governo popular, o primeiro em 502 anos, talvez
pudesse enfrentar com mais vigor o grande problema brasileiro: a
desigualdade social. Achei que, talvez, substituindo a ideia de que o
bolo deve primeiro crescer para depois ser divido pela ideia de
incentivar o crescimento do país com melhor distribuição de farinha,
ovos, manteiga, fogões, casas com luz elétrica, empregos e vagas nas
escolas e nas universidades, finalmente poderíamos começar a nos livrar
da nossa cruel e petrificada divisão entre a casa grande e a senzala.
Meu palpite estava certo. A desigualdade brasileira continua grande e
cruel mas está, finalmente, diminuindo.
Voto, ainda, primeiro contra a desigualdade social, ainda o maior
problema do país, um dos mais injustos do planeta, em poucos lugares há
uma diferença tão grande entre pobres e ricos. A elite brasileira (sim,
ela existe, esta aí), fundada e perpetuada no escravismo, luta para
manter seus privilégios a qualquer custo. Eles são donos dos bancos, das
grandes construtoras, fábricas e empresas, das tevês, rádios, jornais e
portais da internet e defendem ferozmente sua agradável posição. A
única maneira de enfrentar seu enorme poder é no voto.
Voto contra o poder crescente do capital sobre as políticas públicas.
Quem vive de rendas pensa sempre mais no centro da meta da inflação e
menos nos níveis de emprego, mais na taxa dos juros e menos no poder
aquisitivo dos salários. O poder do capital especulativo, rentista, é
gigante, mora na casa dos bilhões de dólares. Voto contra, muito contra,
a autonomia do Banco Central, que tira do governante, eleito pelo nosso
voto, o poder de guiar o desenvolvimento segundo critérios sociais,
protegendo o país do ataque de especuladores e garantindo renda e
empregos, e entrega este poder ao tal mercado, hereditário e eleito por
si mesmo, sempre predador e zeloso em garantir a sua parte antes de
lamentar os danos sociais causados por seus lucros. (Ver Espanha,
Grécia, EUA, Finlândia, etc.)
Voto contra submeter os critérios de uso dos nossos recursos naturais
não renováveis, como o petróleo, ao interesse de grandes empresas
estrangeiras. O petróleo brasileiro e seu destino é o grande assunto não
mencionado nas campanhas eleitorais. Os ataques contra a Petrobras, que
acontecem invariavelmente às vésperas de cada eleição, atendem
interesses das grandes empresas petroleiras, especialmente as
americanas, que querem a volta do velho e bom sistema de concessões na
exploração dos campos de petróleo, sistema que, na opinião delas,
deveria ser extensivo às reservas do pré-sal. Aqui o interesse chega na
casa do trilhão. Garantir que o uso da riqueza proveniente da exploração
de nossos recursos não-renováveis tenha critérios sociais, definidos
por governantes eleitos, me parece uma ideia excelente da qual o país
não deveria abrir mão.
Voto contra o poder crescente das religiões sobre a vida civil.
Respeito inteiramente a fé e a religião de cada um, gosto de muitos
aspectos de várias religiões, sei do importante trabalho social de
várias igrejas, mas não aceito o uso de argumentos ou critérios
religiosos na administração pública. Mesmo para os que professam alguma
fé religiosa a divisão entre os poderes da terra e do céu deveria ser
clara. Diz a Bíblia, em Eclesiástico, XV, 14: “Deus criou o homem e o
entregou ao poder de sua própria decisão”. (Esta é a versão grega, a
versão latina fala em “de sua própria inclinação” ou “ao seu próprio
juízo”.) Erasmo faz uma boa síntese desta ideia: “Deus criou o
livre-arbítrio”. Ele, se nos criou a sua imagem e semelhança e criou
também as árvores, haveria de imaginar que, criadores como ele,
criaríamos o serrote, e com ele cadeiras, mesas e casas, e ainda, Deus
queira!, a ciência que nos permita usar com sabedoria os recursos
naturais e viver bem, com saúde. O poder crescente das igrejas, com suas
tevês e bancadas no congresso, deve ser contido por um estado laico.
Voto contra o preconceito contra os homossexuais. O estado não tem
nada a ver com o desejo dos indivíduos. Ninguém (seriamente) está
falando que o sacramento religioso do casamento, em qualquer igreja,
deva ser definido por políticas públicas, mas os direitos e deveres
sociais devem ser iguais para todos, ponto. Os preconceituosos e
mistificadores, que vendem a cura gay ou bradam sua lucrativa
intolerância contra os homossexuais, devem ser combatidos sem vacilação
ou mensagens dúbias.
Voto contra a criminalização do aborto. A hipocrisia brasileira
concede às filhas da elite o direito ao aborto assistido por bons
médicos, em boas condições de higiene, e deixa para as filhas dos pobres
os métodos cruéis e o risco de vida, milhares de meninas pobres morrem
de abortos clandestinos todos os anos. A mulher deve ter direito ao seu
corpo, independente de vontades do estado ou de dogmas religiosos.
Voto contra o obscurantismo que impede avanços científicos. Há quem
se compadeça com os embriões que serão jogados no lixo das clínicas de
fertilização e ignore o sofrimento de milhares de seres humanos,
portadores de doenças graves como a distrofia muscular, a diabetes, a
esclerose, o infarto, o Alzheimer, o mal de Parkinson e muitas outras,
cuja esperança de cura ou melhor qualidade de vida está na pesquisa com
as células tronco.
Voto contra palavras vazias. Nossa era da mídia transformou a
oralidade num valor em si, esquecendo que há canalhas articulados e bem
falantes e pessoas de bem e muito competentes que são de pouca conversa,
ou até mesmo mudas. Tzvetan Todorov: “A democracia é constantemente
ameaçada pela demagogia, o bem-falante pode obter a convicção (e o voto)
da maioria, em detrimento de um conselheiro mais razoável, porém menos
eloquente”. (1) Há quem diga de tudo e também o seu oposto, dependendo
do público ouvinte a quem se pretende agradar, há quem decore frases
feitas repetíveis em qualquer ocasião, há quem não fale coisa com coisa.
Prefiro julgar os governantes e aspirantes a cargos públicos menos por
suas palavras e mais por seus atos, seus compromissos e sua capacidade
de trabalho em equipe, ninguém governa sozinho.
Voto contra os salvadores da pátria. Pelo menos em duas ocasiões o
Brasil apostou em candidatos de si mesmos, filiados a partidos nanicos,
sem base parlamentar, surfando numa repentina notoriedade inflada pela
mídia e alimentada pelo discurso “contra a política”, prometendo varrer a
corrupção e as “velhas raposas”. No primeiro caso, a aventura
personalista de Jânio Quadros acabou num golpe militar e numa ditadura
que durou 25 anos. No segundo, a aventura personalista de Fernando
Collor, sem base parlamentar e passada a euforia inicial, terminou em
impeachment, bem antes do fim de seu mandato.
Voto na Dilma e contra tudo isso que ainda está aí: a desigualdade
social, o poder crescente do capital, a cobiça sobre nossos recursos
naturais, o preconceito contra os homossexuais, a criminalização do
aborto, o obscurantismo que impede avanços científicos, a criminalização
da política, as palavras vazias, os salvadores da pátria. Com a direita
autêntica fora do jogo podemos, sem grandes riscos de voltar ao
passado, debater o melhor caminho para seguir avançando. Ponto para a
democracia.
(1) Tzvetan Todorov, Os inimigos íntimos da democracia, tradução Joana Angelica DÁvila Melo, Companhia das Letras, 2012.
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