domingo, 13 de abril de 2014

COTAS RACIAIS (por Jacob Fortes).




Pautadas por discordâncias, de um lado, e assentimento, de outro, as cotas raciais estão permanentemente em voga. Conceitualmente, as cotas são vagas que se reservam em instituições públicas ou privadas, (vestibulares ou concursos) e têm o propósito de amortizar dívida histórica do Brasil para com os negros.


Efetivamente, a dívida é fato incontroverso; não foi resgatada por inteiro. Afinal, durante séculos o Brasil fez do escravismo a sua principal bandeira. Bandeira tão amada pelo polo senhorial quanto odiada pelos pregoeiros da liberdade. Manter na detenção mão de obra escrava era negócio dos mais promissores para a sociedade escravista que reinou no período colonial. Por meio do pujante comércio de escravos os senhores da Casa Grande aprovisionavam a Senzala de mão de obra necessária ao cultivo de terras pródigas; onde brotavam gigantescas e luxuriantes plantações, mormente cana de açúcar. Essa a principal razão por que o Brasil foi o último país do mundo a conceder alvará de soltura à mão de obra escrava; só o fez por causa das fortes pressões da Inglaterra. A classe senhorial resistiu o quanto pôde a todas as ideias e tentativas libertárias, sobretudo a partir do século XVIII quando sopraram fortes as primeiras emanações ideológicas que negavam legitimidade ao regime cativo. Essas emanações, de boa semente, demarcaram o lento processo de demolição do regime escravocrata.  Esse passado escravista faz pesar sobre o Brasil enorme dívida social; os negros são detentores de haveres de grande monta. Isso é tão razoável quando induvidoso. Entretanto, as cotas parecem miúdas demais para servirem de moeda de pagamento de avultada dívida. De tão miúdas fazem lembrar racionamento. Racionamento, por essência, tem caráter paliativo, não peremptório. Não é justo que a dívida seja quitada aos moldes dos haveres lançados, em pingas, nos cadernos de merceeiros.


Mas a ideia de saudar, a conta-gotas, dívidas para com a raça negra parece bastante antiga. Exemplificativamente, vejamos: a primeira generosidade dos fautores da escravidão para dissimular as marcas físicas e psicológicas do açoite, surgiu em 1871, (obviamente depois de pressões internacionais), quando se tornaram libertos todos os filhos de escravas nascidos a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre. Posteriormente, em 1885, sobreveio a Lei dos Sexagenários, que assegurou liberdade aos escravos com mais de 60 anos. Claro. Esgotados no eito escravista já haviam perdido a serventia. Sequentemente, em 1888, surge a Lei Áurea que tornou extinta a escravidão no Brasil. Embora a manumissão tenha-se verificado no papel, o negro permaneceu sojigado pela dependência econômica, circunstância que reduziu a aparatosa lei Áurea em simples norma de adorno. Ainda para suavizar as expiações horrendas, criou-se, mais tarde, uma manobra eufêmica por meio da qual a odiosa segregação passou a chamar-se preconceito de cor ou preconceito de raça.

Agora, na esteira dos lenitivos, surgem as cotas, simulacros de manchões, que acodem a poucos. Todavia, “o racismo não é uma entidade personificada por uma só pessoa ou grupo de pessoas”. O Brasil inteiro é multirracial. Sendo assim, benefícios que forem ofertados ao povo deveriam ocorrer de modo isonômico, não desigualmente como evidenciado pelas cotas. Estas, diga-se, assumem o caráter de favor a grupos, circunstância que conspira contra a igualdade de oportunidades. A igualdade de oportunidade é da essência do regime democrático, é princípio constitucional basilar. Nisto merece louvores o princípio fayoliano: “o interesse particular subordina-se ao geral”.


Supondo que as exceções se expandam a outros setores, futebol, por exemplo, situações estapafúrdias haveriam de surgir. No futebol, onde a distância para se bater um pênalti é de nove metros, se o batedor tiver pele negra essa distancia haveria de ser reduzida. Imagine o imbróglio, imagine o cipoal de leis, decretos, resoluções etc., para disciplinar essas insólitas exceções. Favorecer ou desfavorecer por causa da cor da pele são circunstâncias à míngua de amparo porque a Magna Carta assegura igualdade a todos, sem distinção de nenhuma natureza. As cotas, que pressupõe tutela, além de denegar os méritos inerentes à raça negra ainda faz crer que os negros precisam de pares de andas o que não é verdade. Essa proteção impertinente exprime desonra a uma raça cuja ascendência está recheada de heróis. Sob o arrimo da coragem e do talento esses heróis, insurretos, se notabilizaram pelas suas bravuras em favor da liberdade da sua gente: João Mulungu, José Cabrinha, Dragão do Mar, Gangazuma, Zumbi dos Palmares, Adão, Nuno, Ambrósio, Manuel Jurema e vintenas de outros.


Para resgatar a dívida que o país tem com os seguimentos marginalizados, compostos na sua esmagadora maioria, por negros e mestiços, nada mais apropriado, mais completo, mais altivo, mais dignificante, do que os governos oferecerem escolas públicas, completas, regulares e de qualificação profissional. Somente a qualificação permitirá a todos competir em pé de igualdade. Se os negros não estão suficientemente preparados para concorrer a vagas nos vestibulares ou nos concursos públicos, é porque os governos não lhes oferecem ensino que lhes assegurem cabedal necessário ao enfrentamento das adversidades. Qualificar é libertar, é fornecer recursos para a superação. A falta de escola pública de qualidade prejudica não apenas os negros, mas os brasileiros pobres de um modo geral. Ainda que o anseio universal seja a igualdade não se pode desconhecer que a desigualdade permeia toda a Criação. Portanto, é irrelevante arguir desigualdade, mas igualdade de oportunidades é algo que se impõe como indispensável a todos.


É preciso inumar em cova profunda o critério de se estabelecer desigualdade pela cor da pele. Isso fica para colonizadores, hábeis preadores de índios, cujas ações, do alto das suas donatarias, se pautavam, mais das vezes, por mandonismo truculento. As cotas são um modo disfarçado de realçar um racismo que ficou num passado distante. Elas se prestam, senão para viciar, para constranger.


Acordem-se os sonolentos, pois “já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”. O regime democrático nacional, mesmo que pálido de decálogo cívico, infelizmente, não comporta prerrogativas fundadas na cor da pele. Urge que sejam avaliadas todas as clarividências para que, removidas as divergências e as insensibilidades, prevaleça a obviedade: a raça negra merece o principal: escolas públicas de boa qualidade e não o secundário: cotas. Para a valorosa raça negra as cotas, favores de ocasião, exprimem algo que não lhe assenta à dignidade; não honra o seu real merecimento. Elas depõem contra quem recebe e, mais ainda, contra os governos, pois atestam a incapacidade do poder público de ofertar ensino de qualidade. A raça negra prefere a moeda suada, não a achada.

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