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segunda-feira, 17 de junho de 2019

Cine Nazaré - Por Corinto Brasil

A imagem pode conter: Corinto Brasil, tocando um instrumento musical e violão
Corinto Brasil - Músico, Economista - Foto:arquivo pessoal Facebook
No início da década de 60, precisamente no ano de 1962, o saudoso sr. Zacarias Godim, cearense, filho de Sobral, inteligente, carismático, sensível e invejável conhecedor vivencial da arte do cinema, fundou em Campo Maior o CINE NAZARÉ. Denominado assim em homenagem a sua amada esposa: Maria de Nazaré Castelo Branco Lins. Funcionava em um imóvel alugado da Prefeitura Municipal, localizado ao lado da igreja de Santo Antonio (hoje Colégio Hilson Bona). Com extraordinário sucesso empreendedor e representativo da cultura da sétima arte, aquela casa abria sua bilheteria de segunda a sábado no horário de 19h30min e duas sessões aos domingos, nos horários de 18h30min e 20h30min. Vez por outra, seu espaço se transformava em casa de espetáculo para atender a empresários musicais que bancavam shows de artistas com renome nacional, como Valdik Soriano, Luis Gonzaga e Noca do Acordeon
O CINE NAZARÉ era o ponto de atração na maior parte de toda a sua existência (1962 a 1982) quando os adeptos, após cumprirem seus momentos religiosos participando da celebração aos domingos à tarde na igreja de Santo Antonio, eram atraídos pelos clássicos do cinema mundial; os não adeptos seguiam para a praça Rui Barbosa para arriscar outro atrativos. Após se deliciarem das guloseimas vendidos pelo Zé do Bombom, todos se postavam à fila com ingressos comprados a preços populares à mão, a emoção e a fantasia anestesiavam o coração do espectador na ânsia da entrega do bilhete ao fiel porteiro, Seu Estácio, e adentrar naquele recinto para aguardar o início do filme que seria determinado pelo horário ou pela lotação. 

Enquanto isso se ouvia como fundo musical um repertório de músicas instrumentais de orquestras famosas como: Grenn Miller, Românticos do Caribe, Perez Prado ou canções na voz de Silvinho, Carlos Alberto, Bienvenido Granda ou Ângela Maria. De repente, as luzes se apagam, os assovios e os gritos são abafados pelo som do hino da copa de 1958, ” A Taça Do Mundo É Nossa”, composição de: Maugeri, Muller, Sobrinho e Dagô que sempre se fez prefixo daquele momento. Ali o público confortavelmente sentado e pouco dava conta se ao seu lado tivesse um amigo, uma namorada, a esposa, o pai ou muito menos um desconhecido, se desligava de tudo e de todos. Estavam em frente à tela cinemascope e tecnicolor, já funcionando, assistindo primeiramente, aos mais variados trailers dos próximos filmes, às vezes passavam seriados de Roy Rogers, Bat Masterson ou Canal 100, documentários cinematográficos de eventos importantes e do futebol brasileiro exibido semanalmente em todas as salas de cinema do Brasil, em seguida o famoso vôo do Urubu da Condor e por fim o tão esperado filme. 


Nem tudo era um mar de rosas; não muito freqüente, as fitas se quebravam talvez por uma má conservação ou falha no equipamento de projeção ou ainda por falta de energia em Campo Maior, que ocorria devido esta ser gerada por motores a diesel. Na época a sobrecarga era um problema rotineiro na rede de distribuição, que não atendia a demanda local. Essas ocorrências tinham conseqüências desagradáveis no CINE NAZARÉ; A primeira era o suficiente para que a mãe de seu Milton fosse alvo de xingamentos obscenos; a segunda, aí sim, o estopim para entrar em cena, já bravo, com rosto avermelhado e passos firmes o sr. Zacarias Gondim que, para impor respeito, encarava todos com vista larga ao tempo em que repassava em voz alta e com habilidade de um mestre uma retórica dura de ensinamentos da moral e da ética para conseguir seu objetivo. Impressionante o domínio que mantinha daquela situação, pois conseguia mesmo! Todos se calavam, e o silêncio era geral. Após a normalidade, se não repetisse tudo outra vez, a tranquilidade imperava até o final do filme. 


Após negociação conjunta com proprietários do CINE REX e CINE ROYAL de Teresina, os filmes, vindos de Recife, com certo atraso eram enviados de avião, da empresa de Luis Severiano Ribeiro (pioneiro e proprietário de salas de cinema por todo o país) para nossa capital, só depois de exibidos naqueles cinemas chegavam ao CINE NAZARÉ. Recebidos pelo técnico em máquinas de projeção, o Sr. Milton Passos, que fazia um trabalho cuidadoso, minucioso, cansativo e rotineiro destes, corrigindo-os com cortes, remendos com colagens de acetona usada em limpeza de unhas. Vezes sobravam, vezes faltavam tirinhas dessas películas; as que sobravam, caíam nas mãos de meninos que levavam pra casa e usavam em projetores confeccionados por eles: Eram projetores de brinquedo cuja matéria prima era uma lâmpada comum transparente cheia de água usada como lente, uma caixa preferivelmente de sapato com dois furos distintos, um espelho pequeno desses comprados em camelôs e a imagem era projetada aproveitando a fresta de luz do sol do meio dia numa parede conforme a luminosidade de uma das dependências da residência. Um brinquedo incrivelmente saudável e instrutivo da época.


Aquela sala de cinema, na sua fase áurea, representou em Campo Maior um mundo mágico de fantasia, lazer e cultura e repassou para várias gerações verdadeiras maravilhas do cinema. Qual espectador ao assistir, quando menino ou adulto, não se fez passar por Tarzan, imitando o grito e o nado de Johnny Weissmuller? Quem não se “inchou” para parecer com Gordon Scott, Lex Baker, Steves Reeves e Kirk Morris nos filmes de Macister? Quem não se postou entre duas colunas para imitar o gesto de Victor Mature em Sansão e Dalila? Quem não praticou o sapateado de Fred Astayre ou de Gene Kelly no musical Cantando na Chuva? Quem não Chorou de rir com os mungangos e palhaçadas de Jerry Lewis, Ankito, Oscarito, Cantinflas, o gordo e o magro personagens de Oliver Hardy e Stan Laurel no cinema mudo? Quem não caminhou comicamente, como o mestre maior dessa categoria com seus inúmeros e criativos filmes, o ator Charles Chaplin? Quem não usou uma espada de plástico e máscara para fantasiar-se de Zorro ou para imitar Errol Flynn em Capitão Blood e As Aventuras de Robin Wood? Quem não assoviou a trilha sonora composta por Ennio Morricone para filme Três Homens em Conflitos? Quem não fez um revólver de madeira feito à mão para brincar de cowboy e praticar as habilidades de John Wayne, Gregory Peck, Burt Lancaster, Robert Mitchum, Kirk Douglas, James Stewart, Glenn Ford, Lee Marvin, Audie Murphy, Henry Fonda, Yul Brynner, Randolph Scott e Alan Ladd nos mais variados filmes de faroeste? Quem não passou brilhantina nos cabelos para parecer com Cary Grant, Tony Curtis, Paul Newman, Alain Delon, Marcelo Mastroianni, Robert Taylor e James Dean? Até mesmo Christopher Lee no papel de Fumanchú e Conde Drácula inspiraram vários apelidos. Quem não se encantou com os épicos Ben-Hur, El-Cid com Charlton Heston, Spartacus, Ulisses com Kirk Douglas, Rômulo e Remo com Gordon Scott e Steves Reeves, Alexandre o grande, Cleópatra, Hamlet com Richard Burton, Colosso de Rodes, Marco Pólo com Rock Hudson, os bíblicos Os Dez Mandamentos com Charlton Heston, Sansão e Dalila, O Manto Sagrado com Victor Mature; os clássicos Ladrão de Bicicletas de Victorio de Sica, e Assim Caminha a Humanidade com Elizabhett Taylor, James Dean e Rock Hudson, E o Vento Levou com Clark Gable e Vivian Leight, O Amor de Minha Vida, Rua da Vaidade com Katharine Hepburn, Adorável Pecadora, e O Pecado Mora ao Lado com Marilyn Monroe, Gilda Com Glenn Ford e Rita Hayworth, Uma Face e Dois Corações com Tyronny Power, Casablanca com Hamphry Borgart, Sindicato de Ladrões e Caçada Humana com Marlon Brando? Muitas garotas se espelhavam na sensualidade e beleza de Rita Hayworth, Marilyn Monroe e Maureen O’Hara, na personalidade durona de Doris Day, na delicadeza de Ava Gardner e na esperteza de Sofia Loren. 


No final dos anos 60, com a chegada das primeiras imagens de televisão, o CINE NAZARÉ começou a sofrer consequências devido à novidade, a TV Ceará, afiliada da extinta Rede Tupy do Rio de Janeiro, com imagem ainda em preto e branco, transmitida através de uma torre implantada no município de Pedro II. A Movelaria Santo Onofre, para vender seus televisores, usava como propaganda os próprios aparelhos ligados em suas vitrines de 18 às 24 horas, todos os dias. Mesmo com uma sucinta programação, aquele local, situado na av. Demerval Lobão, tornava-se o ponto de referência, atração e lazer do momento, conquistando cada vez mais adeptos. 


No início dos anos 70, o CINE NAZARÉ começava a ter prejuízos na bilheteria, mas o sr. Zacarias Godim, mesmo assim, continuou tocando o negócio e, nesse período apareceram como suporte para melhor enfrentar a concorrência os filmes que se tornaram bastante populares e assistidos por muitos fãs no mundo todo. Eram os cowboys Italianos que tinham como astros: O galã Giuliano Gemma, Terence Hill que fazia parceria com Bud Spencer nos filmes de Trinity e Franco Nero, outro grande ator que interpretava Django. Outros filmes importantes chegam àquela sala de cinema, os de lutas marciais de Karatê e Kung Fú no começo, muito bom; o espectador adorava assistir porque tinham uma história interessante como em, O Vôo do Dragão, interpretado pelo astro Bruce Lee, ator considerado mito das artes marciais do cinema. Após essa fase, seguiu-se uma seqüência desses filmes de lutas caracterizados por má produção e baixos custos, sem início, nem fim e sem enredo só pancadarias e exageros nas filmagens: eram os famosos filmes de Ninjas que, no entanto, chamaram a atenção de jovens dos diversos bairros da cidade como o Cariri, o Matadouro e o de Flores. Público cativo e inspirado, com freqüência, rolava entre eles uma parada violenta dentro ou fora do recinto. (Essa turma ficou conhecida como Ninjas) Em sequência, com a alternância de filmes pornográficos explícitos ficou mais difícil a situação do CINE NAZARÉ, tornando-se notória a decadência pois o público se afastava cada vez mais, a televisão tornava-se o centro das atrações populares, os prejuízos aumentavam e foi por esses e outros motivos que ficou inviável manter abertas as portas daquela que foi a maior casa de lazer e cultura de Campo Maior. 


Com o fechamento, o Sr. Joãozinho Félix negociou com o Sr. Zacarias Godim a compra daquele Cine, e com bastante dificuldade manteve-o ainda em funcionamento por mais um ano, não suportando a margem de lucro que era insuficiente, vendeu para o Sr. Raimundo Pereira todas as máquinas de projeção onde estas foram levadas para as dependências do andar superior da estação rodoviária Zezé Paz. Depois disso, embora tenha havido várias tentativas sem êxito ninguém conseguiu resgatar os tempos áureos do CINE NAZARÉ.


O sr. Zacarias Gondim, por sua vez, embora já cansado não se deixou abater e, apaixonado pela sétima arte, adquiriu um novo e ultramoderno equipamento portátil, e continuou seu trabalho viajando em sua rural, para as cidades vizinhas onde divulgava aquilo que mais o fazia feliz.
Campo Maior, 14 de Junho de 2019

domingo, 13 de março de 2016

SERGIO EMILIANO: a luta deve continuar.


Assim como prenderam Nelson Mandela por trinta anos, assim como assassinaram Martin Luther King, assim como traíram Che Guevara naquela floresta de ninguém... A luta continuou.
Somos um país jovem, colonizados por portugueses sob o manto do Cristianismo que também se expandia a qualquer custo. A elite nascia aí: conservadora, branca, corrupta e nada conciliadora.

O “pouco” que foi feito por Lula com a sua chegada ao poder, nos mostrou uma luz, uma esperança de que algo fosse possível fazer para que enfim, saíssemos do subdesenvolvimento.

Muita gente já esqueceu, ou não eram nascidos, mas foi terrível a luta que travamos contra os generais e coronéis. Os livros, mesmo os oficiais, não me deixam mentir.

Agora, com esse pouco que foi conquistado no governo petista, a poderosa Rede Globo, a revista Veja e esse juiz arrogante, no auge da sua juventude, vem nos mostrar (com total liberdade para investigar e apurar) que estamos dentro do inferno, mergulhados nas chamas eternas da corrupção que assola um único partido.

A corrupção vem de milênios e quando entra na esfera política... Os próprios Estados Unidos da América são os maiores corruptos, pois legalizaram a doação em dinheiros para suas campanhas bilionárias.

Muitas raposas velhas e os novíssimos coxinhas perderam status, cargos, benesses, propinas e já não aguentam tamanho ostracismo. O pavor de nunca mais subir ao poder, fazem deles uns pobres coitados, umas hienas prontas para o golpe.

A mídia ataca, subestima nossa inteligência, tentam nos descontruir. Nada de bom foi feito, nenhum progresso houve nesse país, estamos ladeira abaixo. Eles realmente usam de todas as armas para não mostrar os avanços, as melhorias, a luz que foi jogada sobre os pobres desse país.

Mas, pensando bem, nem nos meus melhores sonhos eu imaginaria um ex-metalúrgico como presidente e agora, uma mulher e ex-guerrilheira, também.

Chore que dói menos, seus coxinhas de merda.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Jacob Fortes: Caminheiro Solitário

Esta semana Jacob Fortes nos premia com mais uma peça escrita que nos conclama à reflexão. 
Campo-maiorense irrequieto, Jacob tem uma das mais lúcidas visões do âmago do homem simples e questionador.

CAMINHEIRO SOLITÁRIO. (Por Jacob Fortes. 20.02.2016).
Ansioso por transpor um monótono chapadão das gerais, norte de Paracatu, desses retratados pelo contista Afonso Arinos, tomei o alvitre, num minuto indeciso, de parar o veículo à porta de uma desfigurada baiuca, à margem da estrada, para obter do vendeiro informações que pudessem abonar a minha bússola de navegação. O chapadão, conhecido pelo codinome de “Rasgo do Corisco”, parecia expandir-se cada vez que eu imprimia ritmo célere à viagem.
Sem desligar o motor, mal pude entender-me com o quitandeiro, alcunhado de “Gajão”. É que nossa conversa, de súbito, encheu-se de embaraços: um andarilho, esfrangalhado, cara enfarruscada, ali em parada de repouso, entendeu de golfar ao vento, sonoramente, asneiras e sandices. Sua impertinência, digna de impugnação, inspirava indulto. Não valia à pena contender com um homem cujo palavreado desconexo e ininteligível, testificava o escangalho do seu estado mental. Outra atenuante é que esses andejos, sem raízes nos pés, tudo que possuem, além da vida e do prazer de pisar o chão das estradas, é um matolão, às costas, locupleto de burundungas, além, é claro, do hábito de falar sozinho consigo mesmo durante as suas marchas; tão solitárias quanto pachorrentas.
Vai caminheiro! Vai cumprir, resignadamente, o teu destino fatídico, a tua desventurada vida de andarilho: deambular, continuamente, como a um penitente, pelos caminhos; nasceste para a liberdade! À margem das estradas (e da vida), Deus há de apiedar-se de ti.

E quando o meu carro, por motivo de viagem, for instado a polvilhar-te de poeira ou de fuligem te peço desculpas por essa circunstância. Nesse momento a tua figura (esquálida, desamparada, estropiada e envolta em trapos repulsivos) irá engrandecer as bênçãos com que tenho sido distinguido, particularidade que me impõem glorificar a Deus por tudo, tempo em que LHO perguntarei, humildado, se é verdade, ou delírio, tanto lixo social sobre a terra perante os olhos insensíveis da opulência, da ganância, do desperdício.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O FIEL DE JUNQUEIRO - Jacob Fortes


Em linguagem ornada de eruditismo robusto, portanto de difícil assimilação por quem se houve em leituras fortuitas, o escritor Guerra Junqueiro (1850 – 1923) narra, por meio do soneto intitulado “O FIEL”, a comovente história de um cão que vivia nas ruas e delas retirava o seu sustento. Aliás, as ruas, no dizer do escritor “João do Rio”, são “a mais niveladora das obras humanas”. É que as ruas tudo admitem: o bem e o mal, o evangelho e o crime. As ruas são igualitárias, socialistas, agasalhadoras, ignoram a erudição, transformam o significado dos termos, criam o chulo e o baixo calão, impõem aos dicionários as palavras que inventam. Mas voltemos ao cão, do Abílio Manuel Guerra Junqueiro; a dissertação das ruas fica para 2016.
Era um reles cão, sem coleira, acostumado ao vento e ao frio.  Para alimentar-se garimpava sobejos nas lixeiras e monturos. Durante as chuvas fortes ou frios rigorosos, abrigava-se nos portais, nos vestíbulos, mas ao menor ralho levantava-se e saía — envergonhado — pedindo desculpas, com os olhos, por haver ocupado um lugar que não lhe pertencia. Inofensivo, jamais mordera uma criança indefesa, sequer ladrara com quem quer que fosse mesmo com os molambentos de sujidade sem par. Porém, não faltava quem o fizesse correr à pedrada.
Certa feita um mísero pintor, boêmio, deparou-se com o solitário cão. Ao vê-lo, de olhar plácido e acolhedor, disse-lhe o pintor: — "O teu destino é quase igual ao meu, eu sou como tu és, um proletário roto, sem família, sem mãe, sem abrigo, e quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto, eu não irei achar o meu primeiro amigo? Tu és o meu amigo e eu sou o teu irmão; partamos, pois, juntos. O sofrimento a dois minora a dor”.
Depois de anos ombreados, dividindo, por igual, privações e dores, o pintor, por obra desses acasos agenciadores de bons e maus sucessos, fora contemplado com a glória, que o libertou da miséria.  Ambos, libertos de tantas vexações, passaram a desfrutar de vida lauta. O cão dormia em confortável tapete à borda do leito do pintor. Ao despertar, de manhã cedo, cuidava de acariciar festivamente o seu amo. Mas o pintor, inebriado de abastança, desandou pelos caminhos da luxúria, das paixões e da esbórnia, circunstância que o afastava cada vez mais do seu leal rafeiro, de quem, aliás, já não tolerava as carícias, aborrecíveis. A indiferença do pintor imprimia ao cão um sentimento de desgosto, cujos olhos, lânguidos e doces, se tornavam melancólicos ao feitio da melancolia da imensidão oceânica. Velho, preterido e negligenciado, muitas vezes se via castigado, até batido pelos criados que lhe davam pontapés quando se punha a ganir chorando o seu destino. Por se haver nojento e pelos em queda, o dono impunha-lhe a detenção para que não o acompanhasse às ruas. 
Certo dia, pressentindo a morte disse a si: "Não morrerei sem antes despedir-me do meu amo; quiçá seja em seus pés o meu último gemido”. Ao meter-se no quarto do pintor, este bradou colérico contra o cão.
— Que fazes aqui, ó sórdido animal? Hei de pôr fim à tua impertinência!
Mas, simulando amizade, consertou.
Ó meu pobre fiel, tão velho e tão doente, acompanha-me, ainda que te custe.
E partiram os dois, no breu da noite, em direção ao cais, que ficava perto.   Aquele proceder, àquela hora, inspirou no cão um pressentimento nefasto. Enquanto o cão, pensativo, lançava o olhar sobre as trevas mudas recebia à face, com a imperturbável amargura do Nazareno, ósculos de Judas. E, resoluto, disse a si: “se este é o meu fadário pouco importa, foi ele que me abriu um dia a sua porta; morrerei se lhe dou com isso algum prazer.". Subitamente o pintor arremessou o cão nas águas profundas e geladas, mas junto, se foi o gorro de memoráveis recordações. De regresso a casa o pintor exclamava irado: “Por causa do cão perdi o meu estimado adereço, antes o tivesse envenenado; daria riquezas a quem pudesse reaver o meu gorro”.  Deitou-se, mas, inquieto, manteve-se insone durante o resto da noite pensando no gorro. E quando o clarão da manhã já era vívido ouviu bater à porta. Ergueu-se e foi abrir. Cheio de espanto recuou: era o fiel cão que voltara: arquejante, exânime, encharcado, a tremer, trazendo à boca o gorro do pintor. E tendo, com esse gesto, erguido para si o altar do sacrifício apenas tombou desfalecido! No plano terreal imolara as suas ilusões, mas restava o amparo da Celestial luz Santíssima.
Essa história de Junqueiro, real ou fabulosa, levará o leitor, inexoravelmente, a muitas ilações acerca da natureza dessas duas espécies que Deus engendrou e fixou sobre a terra: o homem e o cão.



domingo, 12 de abril de 2015

Filho de Oxum

          Sérgio Emilliano
Ontem sonhei  com água cristalina numa bacia com várias pedras de seixo de todos os tama-nhos, como se eu tivesse virado um garimpeiro, procurando ouro entre seus espaços.Algo muito recorrente em meus sonhos.
          Num terreiro de candomblé, as paredes pareciam feitas sem medidas, sem ordem  e a pintura deteriorada me remetiam as Santerias nos arredores de Havana em Cuba. Os trabalhos haviam terminado e uns poucos filhos se despediam uns dos outros.
       Ao longe, tilintavam luzes vermelhas e o vento fazia ruído quando balançavam os penachos dos coqueiros.
    Fui ziquezaqueando , vagabundeando como se estivesse amanhecido nos bares, ouvindo mambo e salsa a noite inteira.Temia que o sol amanhecesse e denunciasse meus defeitos, realçando ainda mais os ralos cabelos, os olhos ressacados, o  bafo de cigarro ordinário e rum. O cheiro de rua na sua melhor essência.
     O bulício na cidade logo começaria e o sol fervente tomaria conta de tudo.Numa banca de frutas, um velho enxotava moscas e as galinhas cacarejavam dentro de uma espécie de cesta gigante.Uma senhora, possivelmente a sua esposa, abanava com as duas mãos, a fumaça azulada do charuto.
    Senti os salpicos de chuva no meus rosto e lembrei das rosas amarelas que havia fotografado pela manhã. Gosto do amarelo, e Deus sabe o quanto insisti para ter um pé de ipê aqui em casa.
    Minha camisa de grife americana ainda estava  apresentável e fugi para o Malecon, a beira mar da cidade. As gotas de espumas molhavam meus pés quando as ondas furiosas do Caribe arrebentavam nas pedras.
      Eu ainda não sabia o que queria do dia. Sou indeciso, volúvel como a água que escorre por entre os dedos.
     Pensei  no meu sobrinho que ainda estava sendo gerado e reconheço que adoro crianças. Até aos dois anos, são as criaturas mais formidáveis em cima da terra. Depois, olhando para o mar, peço que Iemanjá cuide e lhe dê proteção por toda vida.
      Já sentia saudades de casa. Eu gosto de ficar na cozinha, tomando cerveja, cozinhando, com todos ao redor daquela mesa emblemática. Muitos me cobram para sair, mas sou caseiro, um misantropo incorrigível. Aplaca a minha ansiedade, eu ficar jogando conversa fora com meus irmãos.
     Sou filho de Oxum. De frente, no vocabulário deles. Totalmente leigo, me reconheci nas várias características desse orixá, 90% feminino. Deu um certo alívio, mas agora entendo esse meu gosto por coisas boas e sofisticadas, esse meu jeito  estranho  e de se dar com as pessoas.Olhando no espelho, reconheço  o meu narcisismo e a  dificuldade de amar alguém senão eu próprio.Sou sensível ao extremo e vou do riso  às lágrimas num mesmo segundo.       Chamado de bipolar pelos ignorantes, sou um rio de águas cristalinas que desce lentamente, mas lá no fundo se esconde grutas e buracos indecifráveis. Amante do sexo, realizo todas as minhas fantasias eróticas. Gosto de shows, do burburinho das pessoas, do perfume importado e não tolero a injustiça. Quando estou numa roda de amigos, curto aquela fofoca sem maldade e sinto que Oxum dá gargalhadas para mim. Sou ciumento e não me neguem atenção, por favor.
       Continuo fascinado por cachoeiras e não me lembro de um inverno que não as tenha procurado para meditar, para banhar, para saudar o meu orixá que até outro dia era só um espectro perto de mim.
     Dos tambores que ouvia nos arredores de Havana, veio essa verdade carregada de emoção.Sigo sonhando  com águas cristalinas, acendendo o meu incenso e velas de força. Amarelas e brancas.

Sergio Emiliano.


sábado, 4 de abril de 2015


Sérgio Emiliano - Foto Facebook
Costumo sair cedo de casa. Deixo para trás cadeiras na calçada e nelas, ficam meus irmãos conversando amenidades, aproveitando a sombra e fazendo companhia para mamãe.
Havia chovido a noite toda e pelas paredes ainda molhadas, me fazem pensar que quase nada mudou. Na casa propriamente dita, nos vizinhos, no vaivém de pessoas indo ao mercado.
Ando rápido como quem foge apressado, como quem procura desesperadamente alguém para  salvar o seu dia. É a rotina.
Piso firme no asfalto sem querer deixar marcas, mas no fundo, desejando provar que a rua é minha, que a cidade e suas esquinas sempre irão me pertencer.
Na porta do colégio Intellectus pais deixam seus filhos banhados e fardados. Parecem acovardados, zumbis querendo mais duas horas de cama. Fico perplexo quando imagino o valor das mensalidades e tranquilo, segundos depois, quando calculo que nunca terei esse gasto. É o futuro do nosso país e talvez valha o investimento.
Na esquina há uma padaria já lotada de clientes. Mulheres idosas falam do preço do pão, da operação lava jato, de suas vidas insignificantes.
O barulho dentro do ouvido chega a doer. Passa a trombeira com gás, com água, com sacos de cimento.
Continuo andando rápido reconhecendo cada loja, procurando detalhes que não são vistos quando a cidade inteira acorda.
Para não abandonar o costume de procurar sombra, ando sobre a proteção das marquises.
O camelô ao lado do banco do nordeste monta sua banca de óculos e relógios chineses, a fila na loteria começa a aumentar e vem um idoso na minha direção fumando um cigarro ordinário. Fico triste ao constatar a tragédia do corpo, a velhice se escancarando como um tapa na cara.
Ao lado da entrada da loteria, fica um senhor preparando sorvete. Deu para sentir o cheiro das essências de limão e coco ralado, adicionadas num balde de água.
Passo pela loja da dona Pureza e lembro de nunca ter  conseguido 10 centavos de desconto nas compras que já fiz.
Uma criança orgulhosa e catarrenta passa de mãos dadas com a mãe vinda do interior. Queria segui-los. O que resolveriam na cidade? Entrariam na farmácia? Fariam exame de sangue?
Na lanchonete ao lado do Bradesco vejo a Vera da Caixa grudada no celular. De dentro, vem aquele cheiro de lugar recém-aberto misturado com o odor do alho, de carne crua, de água sanitária passada no chão.
Sigo tranquilo, pois o asfalto foi todo pintado com faixas para pedestres, os semáforos a pleno vapor e placas, muitas placas.
Nisso, passa um velho caminhão e deixa uma densa fumaça negra flutuando por entre as carnaúbas do passeio central.
Dobro rápido a esquina e chego aos Correios. O Cardosão sempre é o primeiro a chegar e o último a sair. Respiro fundo para mais um dia de rotina e vejo que eu também não estou sozinho. Os funcionários do Carvalho chegam, a Big Pão há duas horas funciona e o sol atinge a sua claridade total.
Um barulho familiar de carros e motos surge de repente e tudo parece que alcança o seu volume máximo.
Campo Maior acorda mais uma vez e eu, só desperto totalmente, quando ouço o tic-tac do cartão de ponto sendo batido.
A sexta-feira está próxima e serve como um alívio, um relaxante natural da rotina.

Sergio Emiliano.

sexta-feira, 13 de março de 2015

CORRUPÇÃO: NÓDOA QUE PERSISTE. (Por Jacob Fortes, 12.03.2015).


A corrupção vem de longe, chegou debaixo dos panos como passageira clandestina das caravelas.

Por mais que existissem controles enérgicos, monitorados por exatores régios de grande valimento, (governadores, ouvidores e provedores) imbuídos de poderes majestáticos, de prerrogativas supremas para vigiar as riquezas da Fazenda Real, cobrar o quinto, julgar e decidir, o fisco régio era driblado; insondáveis modos corruptivos vigiam: imagens devocionais recheadas de ouro.

Enquanto escoava o rito com que El-rei drenava as riquezas da colônia, oprimida, infetada de corruptos, os rebentos tupiniquins iam surgindo aos milhares, e, nestes, o ardor da liberdade. Suas aspirações libertárias fustigavam-lhes o sangue! Enquanto a emancipação amadurecia, aqui e acolá levantes separatistas glorificavam heróis da independência; pena de morte ou degredo. Finalmente, sem bacamarte, sem baioneta, sem clavinote, sem derramamento, a independência, — por meio apenas de um grito sonoro vindo de especialíssimas circunstâncias históricas —, se fez realidade. Vexados por séculos de exploração os tupiniquins cantaram, se refestelaram.   Porém, remanesceram as bactérias virulentas da corrupção, principalmente na política e na gestão da coisa pública. O que era tomado dos brasileiros à força, pelos mecanismos reinóis, passou a ser tomado à surdina, à matreirice, pelos corruptos e corruptores. Desgraçadamente o povo continua sendo defraudado por uma corrupção sombria e trágica, quase hegemônica. Nisto deriva o sobrepeso escanchado no cangote dos que, com seu trabalho, forjam a identidade brasileira; embora por vezes rotulados de tolos porque se pautam pela correção.

Enquanto a corrupção, viciosa, endêmica, se devota ao santo sacrifício de drenar os recursos públicos, a pátria, — cambaleante, emperrada, de semblante demudado, — desapressa os passos da prosperidade.

Tomara que as mãos equânimes do Supremo Tribunal Federal, ao rigorismo da lei, possam desvendar e punir os corruptos que, por meio de tramoias, vivem parasitariamente à custa do suor dos tributários brasileiros. O país — saqueado, esvaído, — já não tem sangue suficiente para saciar a gula de esponja de tantos fraudadores hematófagos. Ainda que os embusteiros — no papel de diversivos e entregues ao hábito de pretextar para não assumir responsabilidades —, aleguem que a culpa é de Getúlio Vargas por ter criado a Petrobrás, a crença é de que o primado da justiça se imporá. Com ou sem lava jato, urge água e sabão, abundantemente, para remover essa nódoa que persiste. 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Na terra de Fidel - Sérgio Emliano





Depois de muitos sonhos, conheci a ilha de Fidel. A escolha do destino sempre esteve associada à necessidade de entender e conhecer, como sobrevive o país da famosa revolução socialista de 1959 com suas sequelas sociais e políticas. O que 50 anos de embargo econômico será capaz de fazer? Também procurei obedecer a uma máxima do Dalai Lama que diz que pelo menos uma vez por ano, devemos ir a algum lugar onde nunca estivemos antes. Praticar o olhar estrangeiro, ou seja, se não vermos coisas diferentes, jamais faremos algo diferente. É preciso se "assombrar" com a paisagem do outro.

Deixei o governo castrista de lado como condição principal da visita e aguardava ansioso pela surpresa. Boa ou má, serei o mais fiel possível nesse relato de viagem. Porém, como descrever sensações tão íntimas? Quem poderá entender a paz que senti, sentado sozinho, no paredão do Malécon vendo o sol dourado desaparecer no horizonte do Caribe? Viajei, lembrando do navegador Cristóvão Colombo, que descobriu a ilha em 1492 e ficou maravilhado com as cores e o cheiro de canela que perfumava as árvores e os pássaros. Era tudo que eu queria: estar ali, vivendo o que sempre quis viver, sem os receios que um lugar exótico possa causar. Muito bom andar pelas ruas ouvindo um língua diferente, descobrindo que maria isabel e paçoca não é a melhor comida do mundo e que a nossa bossa nova, pode sim, ser substituída pelo som inconfundível dos músicos cubanos.

Foram fortes emoções entre realidades sociais e cultura, regada a muito mojito, rumba e salsa. Lá, o socialismo, é bem financiado pelo "boom" do turismo incipiente, que virou a menina dos olhos dos "irmãos" Castro, tornando-se uma importante política pública do país depois do fim da União Soviética, do colapso da Venezuela, e que gera; desigualdades sociais e raciais muito menores e diferentes das que ocorrem nos países capitalistas, e que faz a maior parte da população, viver numa "igualdade de pobreza" resignada e consciente. A toda poderosa China, agora é a bengala da vez.

Eu nunca quis celebrar a realidade cubana como a esperança mais próxima das teorias marxistas e muito menos, elucidar preconceitos, ignorâncias e decepções dos falsos turistas que só sabem idolatrar Nova Iorque e Paris. Aliás, diga-se de passagem, o preço da viagem sairia quase o mesmo. Claro, que sempre fui curioso por Fidel, por toda sua história, e contra a mídia anticomunista que assola o mundo. Até o odor do Che foi capa da Time americana. E daí? Sou obrigado a virar cordeiro do Imperialismo?

Desembarquei no aeroporto San Martin deixando dentro do avião, o medo de comidas diferentes, as opiniões dos catimbeiros de plantão, um chuveiro e lençol que bem poderia ser parecido com o meu. Fui conhecer, ver com meus olhos inquietos, o dia a dia daquele povo cheio de histórias. Os cubanos são fascinantes e quando eles descobrem que você é brasileiro, todos os maracás chincalham a seu favor.

A arquitetura espanhola tombada pela Unesco é puro encanto, assim como seus castelos, os mais antigos das Américas.Dizem que as colunas do casario espanhol cubano foram esculpidas com música.E é verdade.Fiquei louco observando cada detalhe, cada pedra, foi como andar pela velha Servilha.
 
O voo da Copa air decolou de Brasília e após sete horas sobre a Amazônia, descemos para uma conexão na Cidade do Panamá,conhecida pelo seu Canal e um aeroporto que mais parece um shopping.Nunca vi tantas lojas de griffes num mesmo lugar.Com mais duas horas e meia sobre o Caribe,da janela do avião eu avistei a ilha comunista cercada de todos os lados pelo mar capitalista. Pelo menos, era de um azul turquesa intenso, algo que nem os olhos de um poeta viajeiro, seriam capazes de traduzir.

Será se vão abrir minha mala, terei cara de espião da CIA, levo algum produto proibido? Claro que dá um frio na barriga e vários cachorros cheiravam as malas na esteira. Por temer, que os turistas sofram represália na imigração dos Estados Unidos, eles colocam apenas o carimbo num "visto" que chamam de tarjeta, comprada ainda no Brasil.Mas, eu fiz questão do carimbo no meu passaporte, até porque, não me interessa visitar a terra do Tio Sam.Saí lindo na foto, todo vestido numa camisa da Seleção.

Como o dólar não é bem vindo(sofre uma taxação de até 25%), troquei meus euros no aeroporto pela moeda local chamada de CUC. Os nativos usam o peso cubano que é muito desvalorizado, cerca de 25 vezes menos. Do aeroporto segui para o hotel onde passaria alguns dias e depois me hospedaria na casa de cubanos para viver uma experiência ainda mais intensa. Eles precisam complementar suas rendas e aí, alugam quartos com café da manhã e almoço, por um preço bem  econômico.Também nessas casas, existem os famosos Paladares, que são restaurantes com a comida local, muita conversa, amabilidade e simpatia que chega a transbordar.Camarão frito, arroz misturado com feijão, banana frita....

Por toda a cidade, cartazes gigantes enaltecendo o regime de um só partido. São 11 milhões e meio de cubanos e na capital Havana, moram quase 3 milhões de pessoas. Todos vestem as mesmas roupas. Ninguém é diferente pelos trajes. São roupas simples e coloridas, compradas numa só loja. Os homens altos, brancos e de olhos verdes e azuis, constratam com a negritude das mulheres de bundas enormes. Eles não perdoam a própria mãe na hora das cantadas. Elas fingem que não gostam dos galanteios.

Não há lojas, shoppings, propagandas (graças a Deus). A internet é péssima e apenas para turistas. O celular é para poucos e foi uma maravilha não ver uma legião de jovens com a cara grudada num Sansung 5S. Eles conversam, olham dentro do olho, namoram muito, dançam, abraçam o mar todos os fins de tarde e o futuro....eu não sei.

Não existe motel no país. Alguns quartos são alugados naqueles prédios decadentes. A medida que subimos no prédio, luzes vermelhas e um som de salsa bem baixinho passam pelo desnível da porta. A cada degrau um amasso, uma beliscada, casais que descem sorrindo,  gargalhadas encharcadas de run ouve-se por todo o prédio.

Não há prostituição infantil. A polícia é severa e temida. Câmeras de vigilância estão por todos os lados. Experimente ligar para o número 160 e no máximo, em cinco minutos, um carro da polícia chega aos seus pés. Não há crack, drogados pelos ruas, mendigos, prostitutas e travestis se expondo em vias públicas. Andei pelas ruas da velha Havana às três horas da madrugada e nada aconteceu. Sabe aquela sensação de segurança? Pois é. Ela existe e isso não tem preço.

Os carros são da década de 40 e 50. Cadilacs, rabos de peixe, conversíveis... lindo, lindo.Só acreditando muito em Deus para tentar entender como aqueles carros ainda andam. Algumas vezes quebravam e em cinco minutos o motorista já achava o defeito. Fazem um fumacê horrível e há casos em que uma fuligem gordurosa e negra, é jogada na cara e na roupa dos passageiros. Mesmo assim, eu corria o risco e rodava toda Havana num conversível com o som nas alturas.

Sim, a música anda em todo lugar. De cada janela, de cada casa, um instrumento vai sendo tocado. Tudo é ao vivo, nada de som mecânico. O barulho na cidade é enorme. Pulsa aquela multidão de pessoas tomando ônibus, indo trabalhar, o ronco dos motores dos carros e o sol é impiedoso. Nos meses de julho, agosto e setembro é a temporada de furacões e nos hotéis há avisos nas portas de como se comportar na hora da ventania.

Andei, andei e andei. Conversei com professores, policiais, taxistas, jineteiros (eles são inclementes), e tudo virava um convite para almoçar em suas casas, com seus familiares. São pessoas cultas, sabem da sua realidade, adoram o Brasil, mas quando perguntados sobre o futuro, dão o silêncio como resposta. É uma crise e se não fosse os euros do turismo a ilha entraria em colapso. O porto Mariel estava lá (lindo e maravilhoso), os hospitais tratando de vitiligo e ainda hoje, tem mil russos fazendo tratamento contra a radioatividade da usina de Chernobyl. Os famosos médicos cubanos existem ao redor do mundo desde 1960 quando houve um terremoto no Chile. Hoje, eles são 120 mil espalhados por todo o planeta.

A Universidade de Havana é linda e antiga. Existe desde 1720 e dentro de seus muros há muita sombra, jardins, alunos de todos os países. Fiquei lá horas, conversando com um professor de história e ainda conheci dois museus dentro da própria universidade.

As crianças, todas fardadas, indo para escola de manhã cedo era de encher os olhos. Há turmas para música, balé, teatro, dança e um museu de belas artes de cair o queixo. O bairro chinês é uma loucura. Lá tem muito chinês, descendentes dos trabalhadores que vieram substituir a mão de obra africana com o fim da escravidão. Depois da cana de açúcar, acho que a plantação que esse povo mais trabalha é no cultivo de hortelã. Pense numa cidade que consome mojitos. São folhas e folhas de hortelã num único drinque.

Eu amei aquela gente simples e acolhedora. Não perdia eles indo para as feiras livres de manhãzinha. Tudo muito regrado, falta alguns alimentos e um sabonete capitalista vale um sorriso escancarado de um cubano com direito a 150 dentes brancos.

Almocei num bar GLS, existe pensão apenas para esse público e à noite fui a eleição da Garota Gay Cubana edição 2014. Cada uma media, aproximadamente, 3 metros de altura. A polícia não foi chamada e ninguém ficou preso num campo de concentração, como prega a mídia anticomunista.

Não esqueçam de visitar os terreiros cubanos. São fantásticos, os mais famosos do mundo. Em toda periferia de Havana, explodem os tambores da Santeria. Culturalmente é muito forte, acho que metade da população frequenta. Detalhe: eles podem praticar qualquer  religião. Existe igrejas católicas, ortodoxas, batistas e Jeová. Menos os mórmons, por motivos óbvios.
A Embaixada americana é supervigiada, lotada de policiais e câmeras. Não me deixaram tirar fotos. Ainda bem!

O resto foi encher a cara de run que é fantástico. Você bebe o dia inteiro e não tem ressaca. Nunca havia bebido uma coisa tão gostosa na minha vida. Sempre ao entardecer, comprava minha garrafa de Havana Club 7 anos e descia para o El Malecon, que é a avenida beira-mar. Tem 8 km de extensão e todos os cubanos são idolatrados pelo lugar. Famílias inteiras esperam o sol se esconder nas entranhas do mar. Bebem, cantam, tocam, riem alto, fumam charutos e até esquecem que Miami fica a 130 km dali. Vivem um dia de cada vez.  Acompanham as ondas que lavam e relavam o paredão. Venta muito. O amanhã? Eu juro que não sei e muito menos eles.
Sergio Emiliano.
junho/2014