quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O FIEL DE JUNQUEIRO - Jacob Fortes


Em linguagem ornada de eruditismo robusto, portanto de difícil assimilação por quem se houve em leituras fortuitas, o escritor Guerra Junqueiro (1850 – 1923) narra, por meio do soneto intitulado “O FIEL”, a comovente história de um cão que vivia nas ruas e delas retirava o seu sustento. Aliás, as ruas, no dizer do escritor “João do Rio”, são “a mais niveladora das obras humanas”. É que as ruas tudo admitem: o bem e o mal, o evangelho e o crime. As ruas são igualitárias, socialistas, agasalhadoras, ignoram a erudição, transformam o significado dos termos, criam o chulo e o baixo calão, impõem aos dicionários as palavras que inventam. Mas voltemos ao cão, do Abílio Manuel Guerra Junqueiro; a dissertação das ruas fica para 2016.
Era um reles cão, sem coleira, acostumado ao vento e ao frio.  Para alimentar-se garimpava sobejos nas lixeiras e monturos. Durante as chuvas fortes ou frios rigorosos, abrigava-se nos portais, nos vestíbulos, mas ao menor ralho levantava-se e saía — envergonhado — pedindo desculpas, com os olhos, por haver ocupado um lugar que não lhe pertencia. Inofensivo, jamais mordera uma criança indefesa, sequer ladrara com quem quer que fosse mesmo com os molambentos de sujidade sem par. Porém, não faltava quem o fizesse correr à pedrada.
Certa feita um mísero pintor, boêmio, deparou-se com o solitário cão. Ao vê-lo, de olhar plácido e acolhedor, disse-lhe o pintor: — "O teu destino é quase igual ao meu, eu sou como tu és, um proletário roto, sem família, sem mãe, sem abrigo, e quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto, eu não irei achar o meu primeiro amigo? Tu és o meu amigo e eu sou o teu irmão; partamos, pois, juntos. O sofrimento a dois minora a dor”.
Depois de anos ombreados, dividindo, por igual, privações e dores, o pintor, por obra desses acasos agenciadores de bons e maus sucessos, fora contemplado com a glória, que o libertou da miséria.  Ambos, libertos de tantas vexações, passaram a desfrutar de vida lauta. O cão dormia em confortável tapete à borda do leito do pintor. Ao despertar, de manhã cedo, cuidava de acariciar festivamente o seu amo. Mas o pintor, inebriado de abastança, desandou pelos caminhos da luxúria, das paixões e da esbórnia, circunstância que o afastava cada vez mais do seu leal rafeiro, de quem, aliás, já não tolerava as carícias, aborrecíveis. A indiferença do pintor imprimia ao cão um sentimento de desgosto, cujos olhos, lânguidos e doces, se tornavam melancólicos ao feitio da melancolia da imensidão oceânica. Velho, preterido e negligenciado, muitas vezes se via castigado, até batido pelos criados que lhe davam pontapés quando se punha a ganir chorando o seu destino. Por se haver nojento e pelos em queda, o dono impunha-lhe a detenção para que não o acompanhasse às ruas. 
Certo dia, pressentindo a morte disse a si: "Não morrerei sem antes despedir-me do meu amo; quiçá seja em seus pés o meu último gemido”. Ao meter-se no quarto do pintor, este bradou colérico contra o cão.
— Que fazes aqui, ó sórdido animal? Hei de pôr fim à tua impertinência!
Mas, simulando amizade, consertou.
Ó meu pobre fiel, tão velho e tão doente, acompanha-me, ainda que te custe.
E partiram os dois, no breu da noite, em direção ao cais, que ficava perto.   Aquele proceder, àquela hora, inspirou no cão um pressentimento nefasto. Enquanto o cão, pensativo, lançava o olhar sobre as trevas mudas recebia à face, com a imperturbável amargura do Nazareno, ósculos de Judas. E, resoluto, disse a si: “se este é o meu fadário pouco importa, foi ele que me abriu um dia a sua porta; morrerei se lhe dou com isso algum prazer.". Subitamente o pintor arremessou o cão nas águas profundas e geladas, mas junto, se foi o gorro de memoráveis recordações. De regresso a casa o pintor exclamava irado: “Por causa do cão perdi o meu estimado adereço, antes o tivesse envenenado; daria riquezas a quem pudesse reaver o meu gorro”.  Deitou-se, mas, inquieto, manteve-se insone durante o resto da noite pensando no gorro. E quando o clarão da manhã já era vívido ouviu bater à porta. Ergueu-se e foi abrir. Cheio de espanto recuou: era o fiel cão que voltara: arquejante, exânime, encharcado, a tremer, trazendo à boca o gorro do pintor. E tendo, com esse gesto, erguido para si o altar do sacrifício apenas tombou desfalecido! No plano terreal imolara as suas ilusões, mas restava o amparo da Celestial luz Santíssima.
Essa história de Junqueiro, real ou fabulosa, levará o leitor, inexoravelmente, a muitas ilações acerca da natureza dessas duas espécies que Deus engendrou e fixou sobre a terra: o homem e o cão.



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