Começamos o domingo com uma belíssima peça do escritor campo-maiorense Jacob Fortes para adoçar nossos sentimentos.
Bom início de semana
AURORA MENINEIRA. (por Jacob
Fortes)
Sobre
o meu corpo e também nos meus modos já não existem sinais visíveis da minha
origem: uma cabana, (escassa em mesa, farta em comunhão,) encravada no sopé de
uma montanha situada na aba setentrional dos sertões de Euclides. O meu falar, genuinamente
matuto, inerudito, afastou-se de mim, furtivamente, assim que percebeu minhas
novas amizades: os livros. A minha roupa, empoeirada e fora do esquadro, também
partiu; possivelmente envergonhada por ocupar, no guarda-roupas, um lugar que
já não lhe pertencia. O meu gestual caipira, tímido, sem traquejo, cedeu lugar
a outras formas espontâneas de expressão. As minhas feições, tão tenras quanto às
de um botão em flor, com a consumação dos anos foram-se despetalando. Enfim,
depois de toda essa metamorfose, em várias dimensões, os meus traços, marcantemente
caipira, se desmancharam. Ainda que os distintivos exteriores que fiavam minha
condição de roceiro tenham-se diluido, um após outro, a saudade da aurora
menineira não desgrudou de mim. Ela, que tanto refresca quanto arde, tornou-se
o sacrário das recordações pueris que calibram a minha alma. Cito apenas o desapressado
ribeirão Longá, ladeando a montanha, onde eu tomava banho com os meus manos, e o
vadiar pelos campos em busca da fruta encarnada, do cardeiro.
Ao
meu sertão, não o de hoje, mas aquele, de carne e osso, – cujos habitantes pautavam
a cura das suas enfermidades pelo ocultismo — e que tinha o condão de modelar o
caráter e o decoro da sua gente, o meu agradecimento por haver-me ofertado uma
infância lúdica. Infância que não sabia de onde vinha o que comia. Ainda bem
que nessa quadra pubescente da vida fui poupado do aviso de que em certo
momento acabaria a gratuidade da infância e começaria o tempo dos compromissos
sérios dos adultos, sobretudo perante os padrões sociais ditados pelos
citadinos. Nesse período em que durou a validade da infância pude me lambuzar; comum
é o nordestino fazer-se homem sem ter sido criança.
Gostaria
de detalhar ao leitor os efeitos da saudade dessa quadra de enlevo, porém não
me ocorre o modo mais apropriado. Sendo assim, evoco ao céu o nome do gênio
analfabeto, Zé da Luz, a quem peço por empréstimo as suas palavras, pois elas
têm a medida certa para expressar o remastigar das recordações de uma aurora que
foi a sementeira particular de felicidade no alvorecer da minha primavera.
“Uma dô já rimuída,
Qui
já cançou e num dói
Taliquá
cumo as cumída
Qui
os boi come e arrimói”
Dileto
Sertão, se tu já não vês as tuas marcas em mim é porque elas estão do lado de
dentro do meu peito. Mas saiba: nos confins da minha essência habita um caboclo
que te devota, que se vê em ti, que faz de ti a sua canção preferida.
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