A nossa gastronomia, uma forte cultura, a história escrita com sangue e bravura, associam-se à literatura que tem aflorado de forma significativa no nosso cotidiano. Embora ainda não tenhamos catalogadas todas as obras de autores campo-maiorenses - trabalho que espero ser feito num tempo muito próximo - Jacob Fortes é um desses que escrevem pela paixão às letras. Em suas linhas tão bem traçadas, podemos nos identificar com o autor de tamanho brilho.
Estava em falta com o autor. Há dias que não sentava para ler algo que burilasse meus sentimentos, e, de repente, encontro no meu email vários textos do escritor autóctone.
Vejamos os textos brilhantes pela desenvoltura como foram produzidos:
“EU NUNCA COMI PUDIM” (Por
Jacob Fortes).
O relógio do carro marcava
21 horas quando eu atravessava uma povoação rala encravada numa região exsicada
do Nordeste brasileiro. Neste comenos, a agudez dos meus sentidos dizia que
havia algo à frente. Levantei a luz alta do farol. O vulto adiante se fazia
parecer a um veículo; enguiçado. Levantei
novamente o farol: era uma carroça a passos de tartaruga, puxada por um
jumentinho ruço. Sobre o estrado da carroça um ancião hirsuto, mal-amanhado, e dois
meninos, ambos descamisados e cabelos espeta-caju. A particularidade dos
meninos cingia-se às suas cabecinhas de arroba que faziam lembrar miniaturas de
alienígenas. O conjunto da cena, transporte e passageiros, tinha contornos que
se prestavam a certificar tanto a miséria patrimonial quanto a sublimidade
daquela família: avô e dois netos. Parei ao lado do carroceiro e enderecei-lhe
um efusivo cumprimento de boa-noite. Ele respondeu espontâneo e prazeroso.
— Para onde o Senhor vai a
essa hora da noite? Perguntei.
— Para Santa Rita, respondeu
o Ancião.
— É longe daqui?
— Uma légua beiçuda.
— Essas crianças já
jantaram?
— Nhô não.
— Há, nesta localidade,
alguma padaria?
— Lá naquela luz encarnada
vende pão.
— O senhor aceita uns pães.
— Se o for dado aceito, os bacorinhos
tão com fome.
Derivei o carro à direita
dizendo: queira me acompanhar até a padaria.
Enquanto comprava os pães, e
refrigerante, ocorreu-me perguntar às crianças.
— Do que vocês mais gostam
de comer?
O maiorzinho, seis anos
aproximadamente, olhar mortiço, baixou a cabeça e nada respondeu. O menorzinho,
talvez uns quatro anos, olhar desprevenido, como, aliás, são os olhares
infantis, disse apenas: “eu nunca comi pudim”. A resposta nublou de tristeza a minha
alma não exatamente por causa do pudim, mas porque aquela resposta realçava a
recorrente constatação: “uns com tanto,
outros com tão pouco”. Enquanto famílias,
pacatas — que habitam, anônimas, as vivendas rurais do Brasil — vivem abaixo do
principal, e não maldizem o fado que lhes cabe em sorte, comunidades pracianas
se esgoelam quando lhes falta o secundário. “Uns choram porque apanham outros porque não lhe batem”
Fiquei devendo o pudim, pois
o mistifório de gêneros, onde também se vendia pão, (quiçá sapato para galinha),
não tinha a iguaria tão desejada por aquela criança. Paliei o seu desejo com
uns bombons.
Almejo que as bênçãos
divinas recaiam em messe sobre aqueles meninos, (ecos da minha meninice), assim
como incidiram fartamente sobre mim. Que Santa Rita os conduza pelos melhores
caminhos, mormente os da escola. Evidentemente que o poder sobreceleste precisa
de uma ajudinha terreal: que a corrupção seja exonerada da odiosa função de coadjutora das iniquidades sociais.
DISCURSO DE UM DOIDO. (Por
Jacob Fortes).
Quando, numa manhã aprilina, década de 70, transitava pela Rodoviária (que, naquela época, “valia por todas as esquinas que Brasília
não tem”), deparei-me com um homem falastrão que fazia uma pregação
desconexa. Valia-se de vocábulos e expressões que lhe emprestavam qualidades intelectuais.
Evidentemente, não me foi possível memorizar tudo o que ele dizia, mas pude
intuir o sentido da sua fala; retive a ideia central da sua elocução. Esquálido
e com esgar de louco, dizia o homem imprimindo fervor à sua verdade; que lhe
parecia redentora.
“— Sou o guardião desta cidade. Só
tenho dez minutos para apresentar o relatório sobre o paradeiro da mala. Cadê a
mala que se perdeu neste canteiro de obras? Juscelino não trouxe a mala. Trouxe
candangos, com malas e matolões; também, os “malas-sem-alça”. Procurei a mala
no porta-malas do Aero Willys do Bernardo Sayão; ele engrossou o rol das vidas
ceifadas, mas ficou o seu Aero Willis na garagem. Reconheço o meu lugar;
mantenho-me em vigília. O adversário de Juscelino não sou eu, é o Carlos
Lacerda, que não confessa, mas anseia que um buraco de construção sirva de
túmulo para JK. Agora caio em mim e percebo a loucura dos migrantes chegando
com suas malas na cabeça, apressados, desatinados. Enquanto a cidade brota
deste chão vermelho eu procuro a mala e não acho. Se eu não achar a mala irei
denunciar à oficialidade. Não interrompa minha conversa sem pedir licença. Sou
o historiador oficial desta cidade. Falo em nome do Presidente. Segundo a
unanimidade dos relatos o que fez acender o estopim da insurreição foram as
condições do acampamento....”.
Há
sobre a terra tipos de pessoas a quem não se deve reptar. Os mais conhecidos
são os acometidos de “delírium tremens”,
(beberrões) e os loucos. Da boca de
ambos brota a insânia, o furor, o desvario, o estúrdio. Mas doido, unicamente, são apenas os que,
pelas vias ou logradouros, se detém em solilóquios ou cada um de nós é
legatário do gene que afeta o controle da razão? Vamos pesquisar.
— Qual
sua opinião, Freud?
—
Guardada as devidas proporções todos somos loucos, inclusive eu, Sigmund Freud.
Não foi sem razão que prescrevi o brocardo: de
médico e louco todo mundo tem um pouco.
Sendo
assim, e já que os loucos gozam do excludente de criminalidade, deixemo-los que
se comprazam nos efeitos das suas loucuras. Afinal, tudo tem o seu sentido, inclusive
a insensatez para tonificar o discernimento.
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