domingo, 16 de novembro de 2014

Jacob Fortes: "Nunca comi pudim" e "Discurso de um doido"

Nada melhor do que "domingar" à noite com uma leitura leve e cheia de significados. Tenho um enorme apreço pela lavra do campo-maiorense Jacob Fortes desde o meu primeiro contato com sua obra. Tenho usado este espaço, sempre, para divulgar o que Campo Maior tem de bom.

A nossa gastronomia, uma forte cultura, a história escrita com sangue e bravura, associam-se à literatura que tem aflorado de forma significativa no nosso cotidiano. Embora ainda não tenhamos catalogadas todas as obras de autores campo-maiorenses - trabalho que espero ser feito num tempo muito próximo - Jacob Fortes é um desses que escrevem pela paixão às letras. Em suas linhas tão bem traçadas, podemos nos identificar com o autor de tamanho brilho.

Estava em falta com o autor. Há dias que não sentava para ler algo que burilasse meus sentimentos, e, de repente, encontro no meu email vários textos do escritor autóctone.

Vejamos os textos brilhantes pela desenvoltura como foram produzidos:

“EU NUNCA COMI PUDIM” (Por Jacob Fortes).
O relógio do carro marcava 21 horas quando eu atravessava uma povoação rala encravada numa região exsicada do Nordeste brasileiro. Neste comenos, a agudez dos meus sentidos dizia que havia algo à frente. Levantei a luz alta do farol. O vulto adiante se fazia parecer a um veículo; enguiçado.  Levantei novamente o farol: era uma carroça a passos de tartaruga, puxada por um jumentinho ruço. Sobre o estrado da carroça um ancião hirsuto, mal-amanhado, e dois meninos, ambos descamisados e cabelos espeta-caju. A particularidade dos meninos cingia-se às suas cabecinhas de arroba que faziam lembrar miniaturas de alienígenas. O conjunto da cena, transporte e passageiros, tinha contornos que se prestavam a certificar tanto a miséria patrimonial quanto a sublimidade daquela família: avô e dois netos. Parei ao lado do carroceiro e enderecei-lhe um efusivo cumprimento de boa-noite. Ele respondeu espontâneo e prazeroso.
— Para onde o Senhor vai a essa hora da noite? Perguntei.
— Para Santa Rita, respondeu o Ancião.
— É longe daqui?
— Uma légua beiçuda.
— Essas crianças já jantaram?
— Nhô não.
— Há, nesta localidade, alguma padaria?
— Lá naquela luz encarnada vende pão.
— O senhor aceita uns pães.
— Se o for dado aceito, os bacorinhos tão com fome.
Derivei o carro à direita dizendo: queira me acompanhar até a padaria.
Enquanto comprava os pães, e refrigerante, ocorreu-me perguntar às crianças.
— Do que vocês mais gostam de comer?
O maiorzinho, seis anos aproximadamente, olhar mortiço, baixou a cabeça e nada respondeu. O menorzinho, talvez uns quatro anos, olhar desprevenido, como, aliás, são os olhares infantis, disse apenas: “eu nunca comi pudim”. A resposta nublou de tristeza a minha alma não exatamente por causa do pudim, mas porque aquela resposta realçava a recorrente constatação: “uns com tanto, outros com tão pouco”.  Enquanto famílias, pacatas — que habitam, anônimas, as vivendas rurais do Brasil — vivem abaixo do principal, e não maldizem o fado que lhes cabe em sorte, comunidades pracianas se esgoelam quando lhes falta o secundário. “Uns choram porque apanham outros porque não lhe batem
Fiquei devendo o pudim, pois o mistifório de gêneros, onde também se vendia pão, (quiçá sapato para galinha), não tinha a iguaria tão desejada por aquela criança. Paliei o seu desejo com uns bombons.
Almejo que as bênçãos divinas recaiam em messe sobre aqueles meninos, (ecos da minha meninice), assim como incidiram fartamente sobre mim. Que Santa Rita os conduza pelos melhores caminhos, mormente os da escola. Evidentemente que o poder sobreceleste precisa de uma ajudinha terreal: que a corrupção seja exonerada da odiosa função de coadjutora das iniquidades sociais.


DISCURSO DE UM DOIDO. (Por Jacob Fortes).
Quando, numa manhã aprilina, década de 70, transitava pela Rodoviária (que, naquela época, “valia por todas as esquinas que Brasília não tem”), deparei-me com um homem falastrão que fazia uma pregação desconexa. Valia-se de vocábulos e expressões que lhe emprestavam qualidades intelectuais. Evidentemente, não me foi possível memorizar tudo o que ele dizia, mas pude intuir o sentido da sua fala; retive a ideia central da sua elocução. Esquálido e com esgar de louco, dizia o homem imprimindo fervor à sua verdade; que lhe parecia redentora.
“— Sou o guardião desta cidade. Só tenho dez minutos para apresentar o relatório sobre o paradeiro da mala. Cadê a mala que se perdeu neste canteiro de obras? Juscelino não trouxe a mala. Trouxe candangos, com malas e matolões; também, os “malas-sem-alça”. Procurei a mala no porta-malas do Aero Willys do Bernardo Sayão; ele engrossou o rol das vidas ceifadas, mas ficou o seu Aero Willis na garagem. Reconheço o meu lugar; mantenho-me em vigília. O adversário de Juscelino não sou eu, é o Carlos Lacerda, que não confessa, mas anseia que um buraco de construção sirva de túmulo para JK. Agora caio em mim e percebo a loucura dos migrantes chegando com suas malas na cabeça, apressados, desatinados. Enquanto a cidade brota deste chão vermelho eu procuro a mala e não acho. Se eu não achar a mala irei denunciar à oficialidade. Não interrompa minha conversa sem pedir licença. Sou o historiador oficial desta cidade. Falo em nome do Presidente. Segundo a unanimidade dos relatos o que fez acender o estopim da insurreição foram as condições do acampamento....”.
Há sobre a terra tipos de pessoas a quem não se deve reptar. Os mais conhecidos são os acometidos de “delírium tremens”, (beberrões) e os loucos.  Da boca de ambos brota a insânia, o furor, o desvario, o estúrdio.  Mas doido, unicamente, são apenas os que, pelas vias ou logradouros, se detém em solilóquios ou cada um de nós é legatário do gene que afeta o controle da razão? Vamos pesquisar.
  — Qual sua opinião, Freud?
— Guardada as devidas proporções todos somos loucos, inclusive eu, Sigmund Freud. Não foi sem razão que prescrevi o brocardo: de médico e louco todo mundo tem um pouco. 
Sendo assim, e já que os loucos gozam do excludente de criminalidade, deixemo-los que se comprazam nos efeitos das suas loucuras. Afinal, tudo tem o seu sentido, inclusive a insensatez para tonificar o discernimento.

 

 
 

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