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terça-feira, 16 de julho de 2019

Fabiana Lustosa - O que estamos esperando?

Fabiana Lustosa - Foto rede social

Lembrar do empurrão sofrido pelo padre Marcelo Rossi; do desfecho triste da moça que foi abandonada e resolveu casar consigo mesma; de um grupo de alunos do interior que, após ganhar um prêmio (conhecer um Shopping Center) foi barrado na entrada do mesmo (só crianças, gente!); do caso do menininho que teria que cortar o cabelo para que sua matrícula fosse efetuada; da intolerância e desrespeito gratuito nas redes sociais...Tudo isso me fez refletir...

Ao mesmo tempo, busco na memória e na vivência diária atitudes que transbordam meus olhos (por ainda acreditar no bem) e volto a respirar com uma fé tamanha no ser humano. Vivemos numa sociedade cada vez mais egoísta, que transfere toda a atenção somente para o próprio umbigo e esquece que, muitas vezes, alguém precisa de nossa ajuda; das nossas mãos; do nosso abraço; do nosso olhar. Já pensaram nisso?
 
São esses momentos que me trazem inúmeras reflexões: para qual caminho estou levando minha vida? As minhas atitudes refletem o mundo que quero e acredito? A forma de me relacionar com o outro condiz com minhas falas, especialmente quando enfatizo sobre a gentileza, o amor ao próximo, o fazer e ser a diferença?

Confesso que não consigo me conformar com quem não abraça longo, com quem não fala olhando nos olhos; com quem não exercita sua sensibilidade... 
 
Como a gente faz pra dar uma sacudida nessa gente que sorrir de má vontade e aponta o dedo sem conhecer a história do outro? Que desconhece a empatia? Em que momento passamos a camuflar a nossa sensibilidade, o nosso bom senso, a nossa capacidade de estender a nossa bondade a quem precisa?
 
O que se percebe é que vivemos uma apatia sem tamanho. Estamos perdendo a essência e o nosso olhar já parece anestesiado. Foi por isso que o sociólogo Zygmunt Baumam sempre enfatizou (palestras e livros) que "nada foi feito para durar" já que "vivemos em tempos líquidos."

O que podemos fazer pra mudar isso? O que estamos esperando pra mudar tudo isso

domingo, 31 de julho de 2016

Jacob Fortes: Cuecas e calcinhas

CUECAS E CALCINHAS. (por Jacob Fortes. 31.07.2016).

Jacob Fortes

Durante a quadra menineira ouvia os mais velhos sussurrar segredos pelos quais o colchão tinha, também, a serventia de guardar dinheiro. Eram usanças de outros tempos: quando o mundo era mais áspero, mais adverso, porém menos rancoroso. Naqueles tempos de antanho tomate cereja era conhecido por tomate de tapera e frango “bombado” tinha o nome de galinha de capoeira. Posteriormente, já na adolescência, compreendi que os cofres e bancos eram os locais mais apropriados para salvaguardar dinheiro e escrituras. Porém, o mundo é pródigo em metamorfoses múltiplas. Não faz tanto tempo as páginas midiáticas transbordaram com uma inventividade bombástica: um membro do Partido dos Trabalhadores, num gesto vanguardista, arrojou-se na ideia de transportar dinheiro na cueca. O excêntrico procedimento, (que por certo aterrorizou o órgão genital) acabou por obter a simpatia de algumas mulheres. É o caso, exemplificativamente, de uma decoradora de Guarulhos que fora flagrada com 200 mil euros na calcinha quando tentava embarcar para a Itália.   Essas peças íntimas do vestuário — que na infância se chamavam cueiros, ou fraldas, mas hoje estão na plenitude da maioridade — têm a missão precípua de sitiar partes que, pela sua natureza, exigem os mais ternos desvelos. Transportar numerários de modo incógnito é prática das mais prudentes. Porém, utilizar cuecas e calcinhas como cofre ambulante é exagero de todo inconveniente, pois tais peças não possuem talento para papel tão diverso. Demais, a prática fere a compostura e insta a constrangimentos e vexações. E se, durante o transporte, os esconderijos inquinarem as cédulas ou lhes impregnarem de impertinentes exalações olfativas? Não cuidemos disso agora; fica para depois do desembarque da mercadoria. Inquinando ou não, a prática conspira contra a regra do decoro e, portanto, urge que se coíba essa agressão ao conforto e ao silêncio das partes pudicas. Essas partes, aliás, não são presenças que possam ser vistas aqui e acolá

Antes dessas invencionices, as peças íntimas tinham orgulho em afirmar acerca absoluta do que guardavam, mas agora, depois desses lançamentos exóticos, protagonizados por membros da fauna política, já não têm a mesma convicção. Certas invencionices, aliás, podem até ser legais, mas estranhas à moral, atentam contra o recato e a ortodoxia das intimidades..


domingo, 5 de junho de 2016

OPINIÃO: A CAMA DE FERRO DA INTOLERÂNCIA*

Ensinamento marcante pode ser extraído da mitologia grega, mais precisamente do lendário Procusto, bandido que, vivendo, oculto, na serra de Elêusis, à margem da estrada que ligava Mégara a Atenas, tinha em sua casa uma cama de ferro para a qual convidava os viajantes a se deitarem. Os hóspedes de altura superior ao comprimento da cama tinham, enquanto dormiam, as pernas amputadas a machadadas. Os de altura inferior eram esticados, com cordas e roldanas, até que se igualassem ao comprimento da cama.  O reinado de horror do tirânico Procusto chegou ao fim quando o herói ateniense Teseu o capturou e fê-lo deitar em sua própria cama onde teve a cabeça e pés decepados.  Teseu aplicou a Procusto o mesmo suplício que infligia aos seus hóspedes, incautos. A lógica doentia de Procusto era a padronização, isto é, todos deveriam caber na sua medida, na sua régua. Os que estivessem fora da medida única seriam enquadrados, subjugados. Embora Teseu tenha aniquilado o monstro da mitologia grega, seu espírito intolerante até hoje faz estragos pelo mundo afora, inclusive no Brasil. Aliás, a medida única de Procusto, representada por sua cama de ferro, metaforiza cabalmente o sentido da intolerância de uns em relação a outros. Mesmo sem a crueldade dos métodos de Procusto, frequentemente queremos enquadrar as pessoas na nossa régua de comportamento, nos padrões que julgamos ideias, ajustando-as aos conceitos de como deveriam ser. Vezes sem conta o espírito de Procusto se interpõe à história da humanidade. Exemplos de singular relevo são o holocausto e escravidão negra, onde os que se julgavam seres superiores acharam-se no direito de subjugar os que eram “diferentes”. Na inquisição usou-se até o nome de Deus para enquadrar os “diferentes”.  As cenas comuns de homofobia e ataques a homossexuais não são outra coisa senão reminiscências despertadas da cama de ferro de Procusto.  “Mas, não é a diversidade uma característica de homens e mulheres? Então,  por que insistir em obrigar homens e mulheres a viverem segundo os mesmos padrões e ideais, forçando-os a ajustar suas vidas aos conceitos pré-estabelecidos?”
Acautelemo-nos: o espírito, à solta, do crudelíssimo bandido mitológico ainda não encontrou a quietude do melhor sono; ressurge impondo a sua régua mutiladora, ora fisicamente, ora psicologicamente. Visível ou invisivelmente, a cama de Procusto pervaga por diversos ambientes inclusive nas escolas. “Alunos “diferentes” têm sido mutilados em suas características em nome do padrão social”. Muitos são os que tentam adequar os outros aos seus imperativos, forçando-os a entrarem nas suas medidas.
Que não sejamos acometidos da odiosidade que faz apertar o gatilho contra os que são “diferentes” ou pensam de modo diverso. A diferença entre pessoas é da essência do mosaico de povos. Que Deus abençoe a todos, sobremaneira os que, por serem “diferentes” são molestados pelos procustianos, simpatizantes da cama de ferro da intolerância, dentre os quais conhecidos apóstolos da intransigência: figuras da política, célebres redatores, etc.

* Jacob Fortes

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

UM CORAÇÃO REFORMADO. (Por Jacob Fortes. 10.09.2015).


Desde o berço os órgãos do corpo humano funcionam cheios de motivação. Seus ânimos fazem lembrar o aprazimento das crianças no playground. Porém, com o tempo decorrido começam a apresentar discrepâncias de desempenho; vão-se desmotivando, trabalhando entre regular e sofrível. Uns alegam cansaço, outros balbuciam resmungos inaudíveis sem precisar a natureza das suas queixas. Há também os irritados, cheios de discordâncias, vivem incitando os vizinhos à revolta como se quisessem incendiar coivaras. Enfim, cada qual com suas queixas, patologias e síndromes.
Ao meu coração, esse resignado “boi de carro” que labuta dentro do meu peito, sucedeu que, esfalfado ante a canga do tempo, ameaçava não ir adiante; é o que diziam os laudos médicos. Nesse estado de quem ameaça desabar, fez-se, não de vontade, o meu principal oponente. Isso me metia medo; ter um inimigo, mesmo arquejando, morando dentro de mim. Nem sempre o perigo vem da ação de quem pode, mas da inação de quem está privado de fazer. Em decorrência desse estado de quase apagamento, podia-se antever a suspensão do bombeamento do precioso líquido, de tom escarlate-solferino, que deixaria de dar de beber todo o canteiro. Desse modo, seco o leito dos regatos, dos canais, das regueiras, portanto, sem o Poço de Jacó” para proceder à rega, (perdoe-me o Evangelho de Jesus pela comparação irreverenciosa), pus-me a orar, pedindo a interveniência do alto.
Destarte, era inadiável submetê-lo a um tratamento que pudesse estimulá-lo a cumprir as suas competências, não sei se regimentais ou estatutárias, para as quais fora criado, mesmo que isso exigisse uma intervenção mais severa, inclusive porque, segundo os laudos, tropicava em avarias. E foi debaixo desse gélido sobrosso, dessa inquietação pavorosa, que tomei o alvitre de recorrer a um especialista, o cirurgião cardiovascular Ricardo Corso, que lhe aplicou um disciplinamento; impingiu-lhe uma reforma, vigorosa, que o deixou recauchutado: três safenas, uma mamária. O meu peito de “garrincha”, tão escasso quanto delicado, adquiriu feições de monstro catita. No bojo da reforma a esperança de não sair cedo do palco quem poderia (senão por merecimento, mas por misericórdia) permanecer até o último ato, enfim, não ver cortado o fio da existência antes do epílogo, antes de testemunhar a transcorrência das estações. 
E assim é a vida. Quando se pensa que ela segue o seu curso ordinário o extraordinário se antepõe. “Quando achamos que sabemos todas as respostas, o mundo modifica as perguntas”.   Ninguém sabe o que nos aguarda, Deus sabe. “Quando o discípulo, ou a obra, fica pronto, o mestre aparece”. Aliviado com o resultado formidável da obra de engenharia médica (aterradora), nada me resta senão agradecer; agradecer em tom de salmo: obrigado, primeiramente ao mestre celestial: meu Senhor e meu Deus; obrigado ao mestre terreal: Dr. Ricardo Corso, cirurgião, e sua equipe.  “Um médico, só por si, vale alguns homens”. Agradeço sobremodo ao meu “boi de carro”, pelo sacrifício de haver resistido a tantas vexações, mas revigorado permite a este velho carreiro, por um pedaço de tempo, carrear pela estrada da vida, (contornando as vaidades tolas), e entoando intimamente cânticos em louvor a Deus. Agradeço aos parentes e amigos por me haverem apalpado com palavras de conforto. A todos, por favor, relevem a incontida emotividade de quem esteve sob a ameaça de um exército de malfeitores: temor, incerteza, abatimento, melancolia, mas que se evadiram graças às palavras ternamente sinceras que os parentes e amigos fizeram jorrar sobre mim de modo tão carinhoso a moldes de chuvas de flores. Verdade que agosto, com os seus dias queimosos, tinha para oferecer apenas a nudez das árvores realçada pela nota triste do sabiá no galho, mas setembro, cheio de solidariedade enviou, a título de cortesia, os buquês primaveris; muitos, aliás, segregando néctares que me serviram de fármaco.
Eis que a aflição passou; ficaram as manchas de choro e os gemidos do tamanho dos destroços. Cresceu o meu débito, impagável, inscrito na dívida ativa do sobreceleste. Por já ter sido agraciado nada peço para mim, mas rogo a Deus que livre das enfermidades do corpo e da alma todas as criaturas: humanos e os animais.
Esta página vitoriosa de incentivo à vida, valentemente pelejada por um Corso — não da Córsega de Napoleão, mas do Rio Grande do Sul — a quem dei contornos literários, ergo ao insigne cirurgião cardiovascular, Ricardo Barros Corso, notável da Medicina, mãos enluvadas, tão servo do seu ofício quanto Miguel Couto o foi: “Retirai-me os atributos da Medicina e nada mais me resta. Desde que me entendi, a ela dediquei os meus pensamentos e depois todos os meus atos, e se neste empenho até hoje me consumo só nele me retempero. Para ela (a medicina) os meus anseios, as minhas aspirações e o meu trabalho. Teria remorso de distrair em outros cuidados o meu tempo {...}”.
Nessas horas infaustas, sofrimento, abatimento, é que ganha especial relevo uma Maria, uma Fernanda, uma Carmem, não importa o nome, enfim mulheres extremosas que, fortalecidas no sentimento de amor, velam o amado de modo compassivo sem ao menos perceber que sofrem. Feitas de brandura e firmeza elas, de modo luminoso, vão desbastando desalentos e infundido a fé. Quem as tem que as guarde não somente para as ocasiões de aperturas, mas para o companheirismo, que revigora, fortalece. Cá tenho a minha. Além de Maria também é do Socorro; em cujos atributos há uma particularidade: a de ler os meus pensamentos.
Desta cirurgia de grande porte convalesço, extenuado, limitado de voz e movimentos, porém esperançoso e agradecido. Benefícios são bem-vindos, inclusive os de sabor acre. Se alguém tem alguma dádiva propiciatória ao meu propósito de soerguimento, não precisa luxo: basta uma prece, uma intenção, uma palavra, uma canção, uma “Mercedita”.
A convivência do sofrimento ensina a humildade e lembra, na lição de cada dia, que o homem não é senão o sonho de uma sombra”.


terça-feira, 3 de março de 2015

APOLOGIA AO LIVRO. (Jacob Fortes) jacobfortesdecarvalho@gmail.com


Certa feita, quando menino, fui com o meu pai à cidade; cada qual no seu jumentinho. Chegamos cedo; a cidade despertava numa pachorra de lesma, mas o Mercado Central era madrugador. Enquanto meu pai comprava o essencial nas quitandas do Mercado eu o aguardava debaixo de uma figueira folhuda, ao lado dos jumentos de doma. Próximo a essa árvore existia um quiosque no qual funcionava um biclicletário. O propósito do bicicletário consistia em alugar bicicletas; era o meio de vida do proprietário, Senhor Xudu.
Naqueles áureos anos em que esse transporte foi lançado, possuir uma bicicleta era privilégio de poucos; endinheirados. A única forma de a grande maioria, de pobres, andar de bicicleta seria por meio da alugação.
Debaixo da árvore eu reparava o movimento. Assim que o bicicletário abriu as suas portas começaram a chegar os alugatários; em pouco tempo a frota de bicicletas já havia arribado. Lembrei-me das abelhas do meu sertão, em revoada matinal para encontrar o néctar das flores silvestres. Os clientes, depois que grudavam as mãos no chifre do biciclo, saíam com ar de felicidade. Não era pra menos. Pedalar, oferecendo a face para os beijos da brisa é sempre prazeroso, mesmo quando o percurso impõe farta sudação. Vim conhecer essa sensação agradável próximo à idade adulta quando, morando na cidade, pude ter os meus ganhos parcos, porém suficientes para alugar uma bicicleta.
Daí a pouco, chega mais um freguês:
— Senhor Tadeu Xudu, eu quero alugar uma bicicleta.
— As bicicletas foram todas alugadas. — Aguarde, se puder; em breve uma delas estará de volta.
Pois bem, os livros deveriam ser tão andejos e ter a mesma mobilidade das bicicletas de aluguel, ou das abelhas: continuamente saindo e retornando às bibliotecas. Em vez disso, os livros dormitam nos vãos das estantes, por vezes amontoados, ostentando as marcas visíveis do desuso, inclusive grossas camadas de poeira; em completo desserviço. Pior que essa constatação (quando visitei algumas), foi ouvir diretores se gabarem das suas bibliotecas estarem entupidas de livros; todo o acervo aquartelado, circunstância que reforça as estatísticas: o Brasil continental ainda lê pouco se comparado a pequenos países da Europa. Bibliotecas públicas não deveriam expressar a caixa mortuária dos livros, mas apenas os seus locais de baldeação: marcados por um movimento de vai e vem, aos moldes das bicicletas ou das abelhas.
Se os livros dormitam, maquilados de pó nos seus ataúdes, é porque o povo não lê quanto devia. O povo pode até se encontrar de bucho saciado, mas a mente, insaciável, espera, merece e precisa de continuada leitura. A leitura — maneira barata, e até chique, de entretenimento — ensina a escrever, afugenta a ignorância, prepara, qualifica, fornece experiência, amansa a incivilidade e a grosseria, aperfeiçoa a dimensão interpessoal, possibilita conhecer o mundo, a arte, a tecnologia, amplia a capacidade de percepção, permite avaliar o melhor caminho que a vida oferece, facilita a compreensão dos direitos de si e dos outros. A incorrigível insensatez humana, via de regra resistente a catequizações, por vezes se amolga ante os efeitos benéficos do desapaixonado e fiel companheiro livro, responsável, mais das vezes, por maravilhar as pessoas. Ele (“mudo que fala, surdo que responde, cego que guia, morto que vive”) tem o condão de ameigar os corações humanos. Divorciadas da leitura, as pessoas tornam-se vulneráveis aos caminhos insidiosos; às desditas.
É pesaroso constatar que os livros, mesmo os de boa semente, vão sendo rejeitados a cada dia, vencidos por inutilidades que bem se prestam a fomentar a alienação das pessoas tecnológicas.  Tem-se a impressão de que a glória dos livros parece esvair-se em ânsias de morte. Houve época em que os livros eram companheiros de vigília; não se separavam dos seus amos nem mesmo no interior de coletivos ou em logradouros. Depois passaram a dormitar nos vãos das estantes e, agora, já são encontrados pelos catadores de lixo que os olham com o pensamento voltado para a balança. Esse desuso faz supor que num futuro não muito distante correrá o risco de ser detido, e encaminhado a um manicômio, aquele que, em via pública ou no interior de um coletivo, for flagrado lendo um livro.
Porém, o desábito à leitura não é culpa dos diretores das bibliotecas, mas do modelo; do poder público que não estabelece políticas de motivação à leitura. Mas isso não é insolúvel. Se houver interesse, se as escamas dos olhos forem retiradas, basta colocar o tema em discussão para as ideias acudirem.  Exemplificativamente: que tal se ao alunado brasileiro, em todos os níveis, fosse concedido pontos, como parte da avaliação continuada, pela leitura de livros? Evidentemente a leitura seria aferida por meio de uma banca sabatineira. Que tal, ainda, se os pais vinculassem as mesadas dos filhos à leitura de livros? Que tal, também, se os pais infundissem nos filhos o hábito da leitura, principalmente naqueles que se permitem encabrestar pela internet e programas de televisão, por vezes repletos de vacuidade? Essas leituras, é claro, seriam também sabatinadas. Que tal, igualmente, se um livro retirado de uma biblioteca no estado de São Paulo pudesse ser devolvido por intermédio de uma biblioteca da cidade de Campo Maior-PI, Sobral-CE, Goiânia-GO e vice-versa?
A ideia é fazer o livro se deslocar em múltiplas direções, disseminando o saber em todos os ramos do conhecimento, procedimento similar ao das abelhas que, ao alçarem voo em busca do néctar, prestam valioso serviço à natureza e ao homem. Durante o seu trajeto, as abelhas vão espalhando, naturalmente, por sobre os ovários das flores, os grãos de pólen que carregam nas suas corbículas, realizando, desse modo, a polinização responsável pela fecundação de frutos e, consequentemente, das árvores.
A leitura — que floresceu após a escravidão rombuda — não pode morrer, ao contrário, precisa revigorar-se. Este momento, científico tecnológico e democrático, estaria conspirando contra a leitura?
Também, é preciso desmistificar; leitura não pode ser entendida como artigo de primeira classe, mas artigo de brasileiros: ricos ou pobres. Por que seria espantoso flagrar-se um boia-fria, ou uma lavadeira, fazendo palavras cruzadas ou lendo um Machado de Assis? O Brasil precisa socializar a leitura; não pode continuar lendo nanico, mas do tamanho do seu tamanho.  
Com um esforço bem direcionado do poder público, da estrutura educacional e da sociedade, é possível socializar a leitura e imprimir aos livros um papel parecente ao das bicicletas de aluguel ou das abelhas. 

Quando alguém busca um livro para ser seu companheiro de quem é a glória? Do livro que ressuscita do seu claustro ou de quem o fê-lo ressuscitar?

domingo, 16 de novembro de 2014

Jacob Fortes: "Nunca comi pudim" e "Discurso de um doido"

Nada melhor do que "domingar" à noite com uma leitura leve e cheia de significados. Tenho um enorme apreço pela lavra do campo-maiorense Jacob Fortes desde o meu primeiro contato com sua obra. Tenho usado este espaço, sempre, para divulgar o que Campo Maior tem de bom.

A nossa gastronomia, uma forte cultura, a história escrita com sangue e bravura, associam-se à literatura que tem aflorado de forma significativa no nosso cotidiano. Embora ainda não tenhamos catalogadas todas as obras de autores campo-maiorenses - trabalho que espero ser feito num tempo muito próximo - Jacob Fortes é um desses que escrevem pela paixão às letras. Em suas linhas tão bem traçadas, podemos nos identificar com o autor de tamanho brilho.

Estava em falta com o autor. Há dias que não sentava para ler algo que burilasse meus sentimentos, e, de repente, encontro no meu email vários textos do escritor autóctone.

Vejamos os textos brilhantes pela desenvoltura como foram produzidos:

“EU NUNCA COMI PUDIM” (Por Jacob Fortes).
O relógio do carro marcava 21 horas quando eu atravessava uma povoação rala encravada numa região exsicada do Nordeste brasileiro. Neste comenos, a agudez dos meus sentidos dizia que havia algo à frente. Levantei a luz alta do farol. O vulto adiante se fazia parecer a um veículo; enguiçado.  Levantei novamente o farol: era uma carroça a passos de tartaruga, puxada por um jumentinho ruço. Sobre o estrado da carroça um ancião hirsuto, mal-amanhado, e dois meninos, ambos descamisados e cabelos espeta-caju. A particularidade dos meninos cingia-se às suas cabecinhas de arroba que faziam lembrar miniaturas de alienígenas. O conjunto da cena, transporte e passageiros, tinha contornos que se prestavam a certificar tanto a miséria patrimonial quanto a sublimidade daquela família: avô e dois netos. Parei ao lado do carroceiro e enderecei-lhe um efusivo cumprimento de boa-noite. Ele respondeu espontâneo e prazeroso.
— Para onde o Senhor vai a essa hora da noite? Perguntei.
— Para Santa Rita, respondeu o Ancião.
— É longe daqui?
— Uma légua beiçuda.
— Essas crianças já jantaram?
— Nhô não.
— Há, nesta localidade, alguma padaria?
— Lá naquela luz encarnada vende pão.
— O senhor aceita uns pães.
— Se o for dado aceito, os bacorinhos tão com fome.
Derivei o carro à direita dizendo: queira me acompanhar até a padaria.
Enquanto comprava os pães, e refrigerante, ocorreu-me perguntar às crianças.
— Do que vocês mais gostam de comer?
O maiorzinho, seis anos aproximadamente, olhar mortiço, baixou a cabeça e nada respondeu. O menorzinho, talvez uns quatro anos, olhar desprevenido, como, aliás, são os olhares infantis, disse apenas: “eu nunca comi pudim”. A resposta nublou de tristeza a minha alma não exatamente por causa do pudim, mas porque aquela resposta realçava a recorrente constatação: “uns com tanto, outros com tão pouco”.  Enquanto famílias, pacatas — que habitam, anônimas, as vivendas rurais do Brasil — vivem abaixo do principal, e não maldizem o fado que lhes cabe em sorte, comunidades pracianas se esgoelam quando lhes falta o secundário. “Uns choram porque apanham outros porque não lhe batem
Fiquei devendo o pudim, pois o mistifório de gêneros, onde também se vendia pão, (quiçá sapato para galinha), não tinha a iguaria tão desejada por aquela criança. Paliei o seu desejo com uns bombons.
Almejo que as bênçãos divinas recaiam em messe sobre aqueles meninos, (ecos da minha meninice), assim como incidiram fartamente sobre mim. Que Santa Rita os conduza pelos melhores caminhos, mormente os da escola. Evidentemente que o poder sobreceleste precisa de uma ajudinha terreal: que a corrupção seja exonerada da odiosa função de coadjutora das iniquidades sociais.


DISCURSO DE UM DOIDO. (Por Jacob Fortes).
Quando, numa manhã aprilina, década de 70, transitava pela Rodoviária (que, naquela época, “valia por todas as esquinas que Brasília não tem”), deparei-me com um homem falastrão que fazia uma pregação desconexa. Valia-se de vocábulos e expressões que lhe emprestavam qualidades intelectuais. Evidentemente, não me foi possível memorizar tudo o que ele dizia, mas pude intuir o sentido da sua fala; retive a ideia central da sua elocução. Esquálido e com esgar de louco, dizia o homem imprimindo fervor à sua verdade; que lhe parecia redentora.
“— Sou o guardião desta cidade. Só tenho dez minutos para apresentar o relatório sobre o paradeiro da mala. Cadê a mala que se perdeu neste canteiro de obras? Juscelino não trouxe a mala. Trouxe candangos, com malas e matolões; também, os “malas-sem-alça”. Procurei a mala no porta-malas do Aero Willys do Bernardo Sayão; ele engrossou o rol das vidas ceifadas, mas ficou o seu Aero Willis na garagem. Reconheço o meu lugar; mantenho-me em vigília. O adversário de Juscelino não sou eu, é o Carlos Lacerda, que não confessa, mas anseia que um buraco de construção sirva de túmulo para JK. Agora caio em mim e percebo a loucura dos migrantes chegando com suas malas na cabeça, apressados, desatinados. Enquanto a cidade brota deste chão vermelho eu procuro a mala e não acho. Se eu não achar a mala irei denunciar à oficialidade. Não interrompa minha conversa sem pedir licença. Sou o historiador oficial desta cidade. Falo em nome do Presidente. Segundo a unanimidade dos relatos o que fez acender o estopim da insurreição foram as condições do acampamento....”.
Há sobre a terra tipos de pessoas a quem não se deve reptar. Os mais conhecidos são os acometidos de “delírium tremens”, (beberrões) e os loucos.  Da boca de ambos brota a insânia, o furor, o desvario, o estúrdio.  Mas doido, unicamente, são apenas os que, pelas vias ou logradouros, se detém em solilóquios ou cada um de nós é legatário do gene que afeta o controle da razão? Vamos pesquisar.
  — Qual sua opinião, Freud?
— Guardada as devidas proporções todos somos loucos, inclusive eu, Sigmund Freud. Não foi sem razão que prescrevi o brocardo: de médico e louco todo mundo tem um pouco. 
Sendo assim, e já que os loucos gozam do excludente de criminalidade, deixemo-los que se comprazam nos efeitos das suas loucuras. Afinal, tudo tem o seu sentido, inclusive a insensatez para tonificar o discernimento.

 

 
 

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O VAQUEIRO, O CACHORRO E O MACACO.




Francisco Manduri, mais conhecido pela alcunha de Chico Farofa ou simplesmente Farofa, por mais de uma década vaqueirou na fazenda “Curral Velho”, de propriedade de Terto Manso, também conhecido pelo apodo de “Tertogalça”.
Nas décadas de 1930/40, quando o gado vacum era criado sob o regime de extensão, campo aberto, a tarefa preponderante de um vaqueiro consistia em campear: monitorar e inspecionar o rebanho sob sua responsabilidade. Para tanto dispunha dos cavalos campeiros, por vezes nomeados de boiadeiros. Durante a campeação se fazia acompanhar de um bom rafeiro para ajudar nas reses esquivas ou no resgate daquelas que viessem a tresmalhar.
Certa feita, quando campeava pelos socavões e bibocas do latifúndio, Farofa deparou-se com um macaquinho recém-nascido. Desamparado e debilitado, o bebê apresentava visíveis sinais de inanição. Prontamente Farofa regressou a casa a fim de alimentar o recente. Em poucos dias o macaquinho, agora forte e nutrido, revelou o que é da essência dos macacos: travessuras.  Suas divertidas traquinices enchiam a casa de bom humor. De tanto assistir o vaqueiro montar e sair a cavalo diariamente, acompanhado do Baliza, seu fiel rafeiro, o macaquinho, certa feita, para surpresa de Farofa, pulou no pescoço do Predileto, apelido de um dos cavalos, e firmou-se em suas crinas. O que se supunha ser um gesto isolado do macaco tornou-se uma rotina: bastava encilhar o Predileto e o macaquinho, agora alcunhado de Pinga-Fogo, agarrava-se às crinas do animal e só desgrudava quando Farofa regressava das lidas campesinas. Para não atrapalhar os movimentos do vaqueiro, sobretudo quando precisava inclinar-se sobre o pescoço do cavalo, Farofa ensinou Pinga-Fogo a montar no dorso do Baliza. Para quem se revelara bom aluno de equitação no pescoço do Predileto, Pinga-Fogo rapidamente se tornou um excelente ginete no dorso do Baliza. A dupla estava formada. Havia entre eles uma relação de companheirismo aprofundava pelo labor sertanejo. Quando Farofa parava em uma fonte para dessedentar a si e o cavalo, Baliza e Pinga-Fogo também se saciavam. A companhia de um vaqueiro mirim, montado no cachorro, acabou por transformar a obrigação de Farofa em pura diversão. Mas era preciso zelar pela integridade física do vaqueiro coadjutor. Nesse sentido Farofa mandara o modista da sola, o soleiro, confeccionar um terno de couro para Pinga-Fogo; protegê-lo dos espinhos. Tudo ocorria de modo rotineiro com a dupla quando certo dia, ao regressar a casa, sol pendido, Farofa estranhou o retardo de Baliza e Pinga-Fogo. A demora foi-se acentuando e Farofa, depois de esperar o quanto pôde, encilhou o cavalo e retornou em busca dos amigos evidentemente seguindo o mesmo trajeto por onde havia passado. Ao divisar uma nuvem de urubus, que planavam denunciando carniça, Farofa intuiu que ali estava a razão por que se verificava o atraso dos amigos. Ao se aproximar Farofa constatou que se tratava realmente de uma carniça com que Baliza repimpava a barriga. Enquanto Baliza saciava seu instinto repugnante, Pinga-Fogo, impacientado e contrafeito, aguardava sobre um galho de jatobá do campo com a cabeça recostada ao chapéu-de-couro que lhe servia de travesseiro. Ao perceber a chegado do seu amo Pinga-Fogo, num átimo, voou nas crinas do Predileto e retornou para a casa, feliz. Desse dia em diante Pinga-Fogo não amais aceitou seu animal de montaria. Preferiu mesmo permanecer em casa na companhia de Dona Malvina e seu filho Chico Junior, o Farofinha.