Numa localidade erma,
encravada no vazio do sertão Euclidiano, existia uma vila conhecida
originalmente por Água de Dentro, cujos habitantes, custodiados por uma miséria
tão coletiva quanto próspera, eram pessoas simples que viviam da terra e dela
tiravam o seu sustento. Décadas depois, Água de Dentro ascendeu à condição de cidade,
desta feita sob a denominação de Riacho da Aurora. Aliás, foi na capela do Riacho da Aurora que
se verificou, segundo o folclorista “Leota”, o mais áspero exclamar de
satisfação por parte de um caboclo que acabara de casar-se no religioso; casamento
às pressas com dispensa dos proclamas. Ao ouvir o oficiante proclamar: “eu vos declaro marido e mulher”, e
querendo reiterar à esposa o irresistível enlevo de tê-la desposado, exclamou o
marido apaixonado, no mais genuíno estilo Romeu e Julita, às
avessas:
—
Zefinha, ou bom ou mau, a desgraça tá feita!
Agora que deixei escorrer sobre
esta página essa invulgar declaração de amor, travestida de desmesura, retomo o
curso da história.
Numa casinha rústica da região
interiorana do Riacho da Aurora residia uma viúva, Dona Etelvina, e seu único
filho, o Quincas, apelidado de Quinzin. Sempre acompanhada de Quinzin, Dona
Etelvina, semanalmente madrugava em direção à feira do Riacho da Aurora para
aprovisionar-se de açúcar, querosene e outros mantimentos próprios da despensa
de que quem, pobríssimo, habitava os sertões distantes. Para custear essas
aquisições levava uma cumbuca cheia de ovos de cocar, (entenda-se, por igual
significado, guiné, galinha-d’angola, etc.). Certo dia, aos sete anos de idade,
Quinzin presenciou, na feira, um alvoroço de grande intensidade demarcado por uma
correria estrepitosa e um vozear de “pega-ladrão”.
Era o polícia, Libório Sombra do Norte, o temido soldado “Caninana”, encalçando
um carteirista que havia pilhado a bolsa de uma mulher, transeunte. A detenção
do pilhante se deu defronte ao Quinzin e sua mãe, momento em que “Caninana”,
que também era delegado, era a lei e era tudo, algemou o larápio, a pulso. A
cena fez imprimir na memória de Quinzin não exatamente o semblante do soldado “Caninana”,
mas a cor do seu uniforme, cáqui: que
avultava o temor da sua pessoa. Quando eventualmente alguém, trajando cáqui ou
assemelhado, se aproximava da casa de Quinzin, ele mocozeava-se no íntimo da residência
para não deixar-se ver.
O tempo passou e certo dia
Dona Etelvina, enfermada, pediu a Quinzin, agora com doze anos, que fosse à
feira em busca dos víveres levando, obviamente, a moeda de troca: a cumbuca de
ovos. Quinzin retorquiu alegando que tinha medo de soldado, que tinha medo de
ser preso. Dona Etelvina, então, para convencê-lo ao seu propósito lhe fez
promessa de comprar algo e Quinzin acabou por aceitar a incumbência. Porém, sugeriu
Quinzin, pegaria o caminho que perpassava o velho prédio da estação
ferroviária, lugar de pouca movimentação. Sucede que em virtude de noticioso
caso de furto de umas ovelhas “Caninana”, na madrugada daquele dia, acampanou-se
justamente no prédio, em ruína, da estação ferroviária. Como o sol já
resplandecia no cume das sete horas e, até então, nenhuma evidência do ladrão
de ovelha, “Caninana”, tresnoitado, subitamente abandonou o esconderijo no justo
momento em que Quinzin passava com a cumbuca de ovos. Ao defrontar-se com o
soldado Quinzin, tomado de um medo que lhe fazia acelerar as batidas do
coração, entregou a cumbuca ao “Caninana” dizendo:
— “Taqui que mamãe mandou pro sinhô”.
“Caninana”, abraçado à
enorme cumbuca, que continha uma grosa de ovos, manteve-se estático e em
silêncio sem saber o que fazer nem o que dizer. Enquanto isso Quinzin corria de
volta para casa, prestes a regurgitar o coração, temeroso de que alguma
necessidade expulsória do seu corpo aflorasse, sem o competente alvará de
soltura ou carta de alforria, e viesse macular a sua modesta roupa de rapazola,
“cabra-macho”.
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