dom, 27/07/2014 - 10:26
Jornal GGN - Ex-catador, Cícero Batista sonhou em
entrar para a carreira de medicina com livros que encontrava no lixo.
Livros de biologia e ciências eram os que deixava Cícero mais feliz.
Pegava o que podia no lixo para ganhar algum dinheiro, somado ao
trabalho de vigiar carro e vender latinhas. "Diante da minha situação
social eu não tinha escolha. Era estudar ou estudar para conseguir sair
da miséria extrema", conta.
O dia seis de junho de 2014 é uma data muito importante para Cícero
Pereira Batista, 33. É data da sua formatura, quando ele fez o "Juramento de Hipócrates" e jurou fidelidade à medicina. O diploma na tão sonhada carreira foi um investimento de quase oito anos da vida do ex-catador.
Natural de Taguatinga, cidade satélite a 22,8 km de Brasília, Cícero
nasceu em família pobre e precisou de muita perseverança para alcançar a
formação em uma das carreiras mais concorridas nos vestibulares. Ele só
começou a fazer a graduação aos 26 anos.
"Minha família era muito pobre. Já passei fome e pegava comida e
livros do lixo. Para ganhar algum dinheiro eu vigiava carro, vendia
latinha. Foi tudo muito difícil pra mim, mas chegar até aqui é uma
sensação incrível de alívio. Eu conseguir superar todas as minhas
dificuldades. A sensação é de que posso tudo! A educação mudou minha
vida, me tirou da miséria extrema", conta Cícero.
O histórico familiar de Cícero é complicado: órfão de pai desde os
três anos e com mãe alcoólatra, o médico tinha dez irmãos. Dois dos
irmãos foram assassinados.
Quando tinha 5 anos, o menino pegava o que podia ser útil no lixo.
Inclusive livros, apesar de não saber ler. Com o tempo, conta o
ex-catador, eles foram servindo de inspiração. Ficava mais feliz quando
encontrava títulos de biologia, ciências. Certa vez encontrou alguns
volumes da Enciclopédia Barsa e "descobriu Pedro Álvares Cabral, a
literatura, a geografia".
Cícero é o único da família que concluiu o ensino médio e a
graduação. Para ele, a educação era a única saída: "Diante da minha
situação social eu não tinha escolha. Era estudar ou estudar para
conseguir sair da miséria extrema". Ele terminou o ensino fundamental na
escola pública em 1997 -- na época as séries iam do 1º ao 8º ano. Entre
1998 e 2001, fez o ensino médio integrado com curso técnico em
enfermagem.
Ajuda dos professores e colegas
"Quando eu fazia o ensino médio técnico eu morava em Taguatinga e
estudava na Ceilândia. Não tinha dinheiro para o transporte e nem para a
comida. Andava uns 20 km, 30 km a pé. Muitas vezes eu desmaiava de fome
na sala de aula", explica.
Ao perceber as dificuldades do rapaz, professores e colegas começaram
a organizar doações para Cícero de dinheiro, vale-transporte e mesmo
comida. "Eu era orgulhoso e nem sempre queria aceitar, mas, devido à
situação, não tinha jeito. Eu tinha muita vergonha, mas nunca deixei de
estudar", conta.
Na época da faculdade, Cícero também recebeu abrigo de um amigo
quando passou em medicina numa instituição particular em 2006 em
Araguari (MG), a 391 km de Brasília. "Frequentava as aulas durante a
semana em Minas e aos finais de semana vinha para Brasília para
trabalhar. Era bem corrido", diz. Ele conseguiu segurar as contas por um
ano e meio. "Eu ganhava cerca de RS 1.300 e pagava RS 1.400 [de
mensalidade]. Até cheguei a pedir o Fies [Fundo de Financiamento
Estudantil] por seis meses, mas no fim as contas foram apertando ainda
mais e parei".
Ao voltar para Brasília decidiu fazer Enem (Exame Nacional do Ensino
Médio) para conseguir uma bolsa do Prouni (Programa Universidade para
Todos). Estudou por conta própria, fez a prova no final de 2007 e
conseguiu uma bolsa integral em uma universidade particular de Paracatu
(MG), a 237,7 km de Brasília. Foram mais seis meses -- e Cicero voltou a
Brasília mais uma vez.
No ano seguinte, fez o Enem mais uma vez. Ele queria estudar mais
perto de casa por causa do trabalho -- ele era técnico de enfermagem
concursado -- e da família. Com sua nova nota do Enem, ele conseguiu uma
vaga com bolsa integral na Faciplac (Faculdades Integradas da União
Educacional do Planalto Central), na unidade localizada na cidade
satélite Gama, 34,6 km de Brasília.
"Tive que começar tudo zero novamente. Tive vontade de desistir na
época. Poxa, já tinha feito um total de dois anos do curso de medicina,
mas não consegui reaproveitar nenhuma matéria. Mas no fim deu certo",
conta o médico que enfrentou os anos da faculdade também com a ajuda dos
livros do projeto Açougue Cultural, uma iniciativa que empresta livros
gratuitamente nas paradas de ônibus de Brasília.
Atualmente, Cícero é diretor clínico de um hospital municipal e
trabalha em outros dois. O momento para ele agora é o de "capitalizar"
[ganhar dinheiro] para melhorar de vida e ajudar a família. Cursar um
doutorado fora do Brasil também está entre seus planos.
"Não há desculpa para não seguir os sonhos. É preciso focar naquilo
que se quer. Não é uma questão de inteligência e sim de persistência. A
educação mudou a minha vida e pode mudar a de qualquer pessoa", conclui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário