sab, 12/07/2014 -
Enviado por Marcos F. P. NascimentoPerder, Ganhar, Viver
Vi gente chorando na rua, quando o juiz
apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os
plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi
bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na
bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de
festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a
alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido
e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que
errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos
traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do
coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque
escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos
pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras,
acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do presidente, que
se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande
momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas
desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos
por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha
eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade
diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo,
inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de
bandeirinhas, flâmuIas e símbolos diversos do esperado e exigido título
de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do
lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros
de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti
tanta coisa nas almas…
Chego à conclusão de que a derrota, para
a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a
admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto
quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o próprio
modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também
a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento
das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o
indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos:
começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar
esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir
da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso,
ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das
coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse
à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e
trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil,
que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do
incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um
objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não
trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do
espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente
ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de
perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a
sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre
nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da
volubilidade das coisas.
Perdendo, após o emocionalismo das
lágrimas, readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da
moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a
verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns
pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo,
com tendência a evaporar-se. Eu gostaria de passar a mão na cabeça de
Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como
Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse
gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale
por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê!
Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós,
mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um
lindo sol lá fora, o sol de nós todos.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?
Carlos Drommund de Andrade
7 de julho de 1982
Crédito da matéria: Jornal GGN
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