dom, 27/07/2014 - 17:47
- Atualizado em 27/07/2014 - 18:12
Enviado por Romério Rômulo
do jornal O Tempo
O poeta Adão Ventura morreu em junho de 2004, e de lá para cá sua
poesia vem sumindo. Que autores sejam apagados do mapa da história
literária não é incomum, ao contrário. A imensa maioria despenca no
abismo sem fundo do ostracismo apenas alguns anos depois da morte. É
engano imaginar que o “gênio” louvado hoje pelo imediatismo da mídia
mereça o rótulo de ótimo ou de bom depois de amanhã. Mesmo ser chamado
de ruim é ainda “menos pior” do que inexistente. E a grande maioria não
resiste sequer a uma década de desprezo. Vira sombra de sombra de
sombra.
NEGRO? PIOR AINDA
Sempre me espantou a segurança com que Maria Mazzarello Rodrigues, a
Mazza, trilhou sua caminhada de militante e editora. Negra ela mesma,
acreditou que a cor da pele não inferiorizava ninguém e foi em frente,
desde a década de 1960, pelo menos, quando as pessoas tinham vergonha da
própria cor.
Alguma coisa mudou deste então, principalmente a visão de cada
um como ser humano, mas não mudou muito, principalmente em cidades
marcadamente racistas, tipo São Paulo e Belo Horizonte. Na época a que
me referi, antes da revolução cultural pop, ser negro era quase como ser
leproso. Vivia-se em guetos e os pretos conheciam seu lugar na
pirâmide, ou seja, no degrau mais baixo, condenados à inferioridade
social do nascimento à morte.
NEGRO E CAPIAU
No poema “Viagem à capital”, Adão se descreve assim: “Eu, menino/
enfatiotado,/ roupa domingueira,/ botina nova/ vindo do Serro/ e, puxado
por minha mãe,/ Sebastiana de José/ do Teodoro,/ desço da jardineira/ e
entro no Bar/ e Restaurante Chapéu de Sol.”.
Os nomes revelam muito. O avô paterno era Teodoro da Fazenda. O
pai, José Ferreira dos Reis. A mãe, Sebastiana. Daí Sebastiana de José
do Teodoro, forma comum em comunidades pequenas de nomear as pessoas
pela ascendência.
O espantoso, no caso de Adão, é que o negrinho enfatiotado de botina nova, neto pobre de escravo, tenha se tornado grande poeta.
ESCASSEZ
No site “Recanto das letras”, Nelson Marzullo Tangerini escreve
que “a poesia negra brasileira não cessou com Luís Gama”, quase como se
quisesse dizer que só houve poesia negra antes e logo após o
Abolicionismo. Mas ele mesmo quase confirma o que insinua, ao nomear
apenas, no século XX, dois poetas-papel, Cruz e Souza e Solano Trindade,
e a seguir uma série de letristas e compositores populares, às vezes
forçando a barra com o famoso “tinha sangue negro”, como se ter sangue
negro ou índio não fosse comum a pelo menos 70% da população brasileira.
CONVÍVIO
O que livrou Adão de ser apenas mais um preto-pobre foi a
inteligência aguda, uma excepcional intuição estética e a vontade de
sair do submundo. Tais atributos não são comuns, motivo pelo qual a
imensa maioria dos pobres continua sendo pobre e a imensa maioria dos
negros continua sendo preto-pobre.
Escapar dessa armadilha socioeconômica exige pelo menos duas
das qualidades acima. Para, além disso, se tornar um grande poeta, é
preciso acrescentar o terceiro ingrediente, a intuição estética aguçada.
Foi assim que Adão saiu do limbo social e se tornou amigo dos
escritores jovens (e brancos, naturalmente) que gravitavam em torno de
Murilo Rubião, no Suplemento Literário de Minas Gerais, ainda na década
de 1960.
VIAGENS
A democratização crescente do país e a elevação da renda,
principalmente nas classes mais pobres, permitiu que viagens de lazer e
estudos se tornassem muito mais frequentes do que naquela época. Um
programa como o “Ciência Sem Fronteiras”, criado no governo Dilma, tem
permitido que milhares de estudantes brasileiros sem recursos cruzem o
mundo em busca de conhecimentos até então reservados a poucos.
O jovem Adão não teve essas regalias. Viajar para o exterior
era privilégio de ricos e da classe média alta. Enquanto seus colegas
abonados da faculdade de direito desfrutavam mordomias em Paris, seu
lugar era aqui, e já estava mais do que bom.
VOA O CORVO
Persistência não faltava ao jovem Adão. A vantagem de ser artista
ou atleta em qualquer lugar é a relativização da discriminação racial.
Nas profissões de ponta (medicina e engenharia principalmente) a
segregação tem origem nos requisitos prévios para ingressar na
faculdade: pais capazes de bancar horários integrais.
Filho de Sebastiana de José do Teodoro da Fazenda, tudo o que
Adão podia fazer era teimar e insistir. E tanto insistiu que, mesmo
desconhecendo inglês, conseguiu ser escolhido para lecionar literatura
brasileira nos Estados Unidos.
No mês anterior à viagem, passava os dias com um exemplar do
“Grande Sertão” debaixo do braço. Eu brincava dizendo – acho que já
contei isso – que ele lia por osmose. E lá se foi o poeta, tropeçando no
espanhol, que também não dominava.
NEGRO, ENFIM
Já não se enforcavam negros em árvores nos EUA e os movimentos
civis iam de vento em popa, reivindicando e crescendo. No Brasil, o
racismo continuava o mesmo: enrustido, dissimulado e escorregadio, como
até hoje.
Mas foi assim que Adão se compreendeu negro, na profunda
solidão vivida lá fora. Pela primeira vez, já com dois livros
surrealistas publicados, entendeu que não era branco. Foi então que
nasceu “A Cor da Pele”, seu grande-pequeno livro confessional.
Enquanto viveu aqui, Adão era negro e não sabia.
Crédito da matéria e fotos:
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